1, 2, 3 E JÁ!
Admiro a espontaneidade dos filhos.
Eles fazem 1 e 2, especialmente o 2, em qualquer lugar: numa loja, no restaurante, no avião, no ônibus. O estômago apontou e não tomam frescura, procuram o banheiro próximo e voltam com rosto alegre e recomposto. Não comentam nada, mas pressinto o despojamento e a vida longe de sacrifícios e renúncias, de medo e boicote. Não castigam o corpo, muito menos maltratam o ciclo por pudor.
Eu não, demorei muito para falar do assunto. Ainda mais para fazer o assunto fora de casa.
Atravessei três décadas evitando cocô em locais públicos. Não ria, por favor, é sério. Temia de vergonha, tremia que alguém visse ou comentasse o fedor, que fosse denunciado numa festa ou que um desconhecido pensasse que estive ali somente para minhas necessidades. Claro que estava no banheiro para necessidades, mas a loucura consistia em acreditar que as pessoas reparavam em mim. Experimentava viagens cansativas e aguentava uma semana de prisão de ventre, até regressar aos azulejos azuis e terapêuticos do meu toalete. Relaxava apenas em meu toalete, a porta chaveada com duas voltas.
Não mudava de opinião, ainda que ameaçado pelo número 3, ainda que atravessando o Oceano Atlântico, suava frio e permanecia com a coerência educada. Na volta, já estava irritado, ilegível para conversa, tamanho o desespero e o bloqueio.
Não era problema de limpeza, da tampa seca, do pavor de micróbios, pois não sou famoso para ser Michael Jackson, celebridade é que coleciona fobias de contaminação e usa máscara e cuecas descartáveis; guardava receio da fofoca.
Há três anos que me libertei do condicionamento e abri exceção para cagar (ai, disse!) em hotéis. Tranquei-me no quarto por cinco horas lendo as revistas de programação de tevê. Quando atingi a grade dos canais abertos, o milagre aconteceu. Passei por fases de transição, óbvio, e consegui me acostumar com a ideia de que inclusive o papa compra e usa papel higiênico. Agora não corro riscos, todo ponto é normal e viável. Nasci para o mundo recentemente.
Mantive a repressão por trauma. Os pais e manos gostavam de debochar do cheiro, existia uma diversão sádica acentuada pela falta de espaço. Sentia-me vigiado na infância, acovardado pelas dores de barriga.
Família grande com um único banheiro rendia disputas e golpes baixos. Nas contas domésticas, masturbar recebia o crédito de pecado, já ir aos pés respondia a um crime. Não havia ética e Piaget que aliviasse a barra. Três irmãos não geram pressão, e sim terrorismo. Começavam com pancadas na porta para que terminasse rápido, logo mexiam o trinco como num filme de terror, em seguida gritavam para quem se encontrava na sala. Suportava o escândalo duas vezes por dia. O relógio biológico não tinha paz, funcionava pela corda da descarga. Apertava várias vezes fingindo o fim para ganhar alguns minutos de prorrogação.
Complicada também a chacota da saída, os comentários maldosos como "está podre", "morreu e não foi enterrado", "é a Borregar" (fábrica de celulose poluente da época), "olha o esgoto", "não dá para receber visitas". Virava um programa de debate esportivo na hora do almoço e da janta.
Eu me constrangia de humanidade, e me tolhia como modo de pedir desculpa.
Nunca brinquei com meus filhos sobre o tema, muito menos cometi alguma piada indiscreta. Sei o quanto custa e o quanto que tira a fome.
Publicado na minha coluna
"Primeiras Intenções"
Revista Crescer
São Paulo, P. 111, Número 199
Junho de 2010