A ALMA DO PARA-CHOQUE
Arte de Roy Lichtenstein
Comprar carro é enfrentar o pânico de batê-lo no primeiro dia.
Saio da concessionária com o pé tremendo no acelerador, ligo o pisca-alerta 10 minutos antes do contorno. Ando realmente devagar como uma mula, tranco o sinal, recebo buzinadas.
Reedito um nervosismo de autoescola, erro as marchas, belisco o meio-fio, sequer mexo nos botões do painel para não me distrair.
Pelo impacto da emoção, desaprendo a dirigir.
Não é só comigo que ocorre. É a maldição do primeiro dia da compra. Todos temem arranhar o veículo na saída, estragar o investimento, manchar a reputação de motorista sério. Pode ser piloto de Fórmula Truck ou um adolescente filhinho de papai, o medo é contagioso e não escolhe as vítimas.
Quem não pegou a chave no salão encerado e vacilou em pensamento: “Como vou tirá-lo daqui com essa gente me olhando?”
Vem uma mendicância, uma desvalia, uma orfandade com carro novo.
Será uma humilhação acionar o seguro já nas horas iniciais. Imagina: nem mostramos para a família e a novidade está sequelada. Ficaremos com a sensação de que não merecemos o presente. É assinar o atestado de incompetência.
Carro novo deveria vir do estacionamento direto para a garagem. Sem risco de barbeiragem. Sem trânsito no meio do caminho.
Carro novo é carro emprestado ainda. Será nosso depois que desaparecer o cheiro de chiclete dos bancos.
Carro novo é o autêntico teste de balizas. Um magneto de desastres. Um ímã de inveja. Não tem como dissimular sua estreia, a lataria traz em si faróis de neblina.
Atravessamos as ruas como se estivéssemos nus. Indefesos.
Sabe aquela história da infância: quando tudo está perfeito alguma coisa de ruim acontece? Introjetamos essa máxima sádica dos avós e boicotamos nossa felicidade.
Acho que os outros motoristas se sentem incitados a nos testar. Não abrem passagem, não facilitam a troca de pista, motoqueiros surgem do nada, caminhões trancam as vias no cimo da ladeira.
É o equivalente adulto do sofrimento do tênis branco. Na escola, quando aparecia com conga novinho, os colegas se aproximavam maldosamente para me batizar. Sempre voltava da aula com o par sujo e emporcalhado. Impossível conservá-lo por 24h.
Quando compro carro, não me arrisco mais, não barateio a paz.
Entendo que a alegria é uma solidão. Nossa maior solidão.
Com um veículo brilhando em casa, passo a andar de ônibus por uma semana, até vencer o estágio probatório do acidente. Os filhos e a namorada juram que enlouqueci, mas não vou dar mole ao olho gordo. Só pego o carro quando ultrapassar a zona de risco de sete dias.
A superstição é meu para-choque.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17439