A CHAVE DA MOSQUITA
Foto de Adriana Franciosi
Adivinha quem tem a chave da terceira mais antiga igreja do Rio Grande do Sul? O padre? O bispo? O prefeito?
Não, a beata!
É ela que abre e fecha a imensa porta azul de seis metros da Igreja de Santo Amaro, em General Câmara, cidade de 9 mil habitantes, a 75 quilômetros da Capital. Para facilitar o controle, mora numa casa verde na esquina, ao lado da construção religiosa de 1787.
Elenita Terezinha de Souza Vianna, 61 anos, conhecida como Mosquita pela magreza de osso e hiperatividade, é a responsável há 21 anos pela belíssima igreja açoriana, que fica às margens do Rio Jacuí.
É ela que chama o sacerdote Fábio Lúcio Santos para a missa às 18h no domingo, que varre e encera as tábuas da sacristia, escova a pia batismal, prepara a mesa da hóstia e do vinho, lava a roupa e a toalha das cerimônias, puxa os cantos da celebração, toca o sino, corta a grama do pátio, fiscaliza goteiras, expulsa morcegos e demônios do assoalho e resolve problemas hidráulicos.
Sua vida é orar. Muda de ambiente conforme o estado de espírito. O ambiente muda seu estado de espírito. Quando fica chateada, reza na varanda. Magoada, senta no sofá da sala. Muito sofrida, desfia as orações sem sair da cama.
– O sofrimento vai me tirando espaço. Dor é quando o divino me põe de castigo no quarto.
Por um triz não renunciou a fé, e não cerrou as cortinas de seu aposento para sempre: quando seu marido morreu em 1994. A viuvez de Edílio Vianna fez sua esperança escurecer. Foram casados 26 anos, gerando quatro filhos (Solângela, 43 anos, Élida, 41, Alexandra, 39, e Lissandro, 31) e seis netos.
– Nunca briguei com ele. Foi meu marido, pai e avô. O luto durou nove meses, uma gestação ao contrário. O luto acabou, não a tristeza. Casei cedo, casei menina com 16 anos, casei na Igreja Santo Amaro em 1966, cuidar dela é ainda uma forma de cuidar do meu marido – desabafa.
Disposta a não ceder ao ceticismo, dentro de sua residência, está armada de cinco terços, duas flâmulas de Santo Amaro e São Jerônimo e três estatuetas de Nossa Senhora Aparecida, São Jorge e Santo Amaro.
– Decoro qualquer estante como se fosse um altar – confidencia.
Mosquita experimenta a autoridade de um diácono de saias. Ensinou catequese, encaminhou corpo, abençoou morto, passa a tarde dando conselho amoroso para o bairro.
– Eu mesmo erro, me penitencio e me absolvo. Sou um pronto-socorro espiritual, enfermeira da alma.
Mas quem espera uma beata ranzinza e repressora, de véu preto e verruga no meio do rosto, encalhada e invejosa, pode tirar o cavalo da chuva. Ela gosta de falar bobagem para facilitar a confissão. Não sofre de moralismo de calcinha (como ela diz), mostra-se generosa com as falhas dos amigos, tampouco esconde o que tem de ruim para parecer boa.
Órfã, com instrução até a 5ª série, aceita o que o destino oferece e não pede mais do que pode viver.
– Converso muito comigo. Rezar é reclamar para mim. Na hora de acender as velas, eu me xingo pelo hábito de guardar fósforo usado na caixinha de novos. Quem se xinga logo começa a rir.
Com os olhos espertos e uma loquacidade interminável, prefere economizar Deus a gastá-lo em longas leituras. É uma chocólatra dos evangelhos.
– Bíblia é como chocolate, leio um pedacinho por dia, senão tenho que fazer regime.
A chave é com ela, e só com ela, os vizinhos já decoraram o caminho da fé.
– Minha casa é de barro e pedra, sem cimento, tijolo por tijolo encaixado.
Elenita faz uma pausa e se dá conta:
– Igual à Igreja de Santo Amaro.
Homem e Deus são feitos do mesmo material. A Palavra.
Amém.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 35, 28/05/2011
Porto Alegre, Edição N° 16713
Acompanhe os vídeos com a beata Mosquita.