A CHUVA É FRIA PARA TODOS
Quem lucra com a chuva é taxista. Os usuários de ônibus não suportam as poças, os pedestres se veem ameaçados pelos carros chapinhando no meio-fio, os idosos se perdem entre o guarda-chuva e a bolsa.
Nada como uma tempestade para criar preguiça. As xícaras fecham suas asas, as casas trocam suas chaminés pelo prefixo luminoso.
Meia hora de chuva e Porto Alegre é um hidrante aberto. O Arroio Dilúvio conversa com o Rio Guaíba, as árvores pesam uma segunda primavera.
Chuva é velório, a cidade morreu. Chuva é o Apocalipse encenado no jardim de infância.
Os únicos que estão faceiros são os taxistas. Os carpideiros do trânsito. Os agentes funerários das rótulas. Os garçons dos semáforos. É coçar o cotovelo e o motorista encosta. O ato de secar o rosto no outro lado da rua é compreendido como um pedido. Cuidado com os gestos, o reflexo da água é mais um retrovisor do taxista.
Os táxis vermelhos circulam encostados no lotação. Lotam as vias. Andam em ziguezague como uma ambulância. Ruidosos e preferenciais.
Precisaremos telefonar para três pontos com o objetivo de vencer a linha ocupada. O atendente dirá que o táxi vai demorar um pouco. Aqueles veículos que vinham em cinco minutos em tardes ensolaradas triplicam atrasos com o toró. Tão complicados como agendar consulta na Previdência. Tão disputados como autógrafo de Paulo Coelho.
Era uma de minhas três certezas na vida. Confiava que a categoria tirava o atrasado, fazia caixa, enriquecia com os sapatos encharcados dos clientes.
Mas a data mais melancólica do taxista é quando chove. É o temido dia do PF (Porta Fria). A central o convoca para um endereço, ele chega lá, estaciona na frente, espera, nenhum sinal do passageiro, desce para verificar o que aconteceu, toma umas pancadas nas costas, molha a camisa, aperta o interfone, ninguém atende. Já não sabe se fica ou parte para outra. Preenche as palavras cruzadas do jornal, liga para o rádio, cruza as pernas, pede uma decisão, desce de novo, aperta o interfone, se tiver sorte alguém atende e avisa que o responsável já foi.
De seis chamados, quatro desistem. A maior parte dos pedidos entra no vácuo. Os desesperados mudam de ideia, arrumam um jeito mais rápido de sair. A ansiedade aceita qualquer socorro e trai a confiança da palavra. Ninguém desmarca ou formaliza a dispensa. O taxista pode atravessar extremos à toa, gastar gasolina e não receber nenhum pagamento.
O sindicato teme temporais. Os empregados do serviço tampouco desejam trabalhar, desligam o taxímetro de suas personalidades.
Descobri a verdade com o Zé do bairro Petrópolis, no momento em que caía o mundo na varanda. Ele percorreu três quarteirões comigo. Fui buscar minha filha Mariana na ginástica. Ficou com a cara feia, amarrada, pela corrida curta. Quase a explicar que custou mais para vir do que para me levar.
— Só isso?
— Só, Zé, pelo menos foi uma porta morna.
Crônica publicada no siteVida Breve