A CULPA É DO KEEP COOLER
Arte de Marie Laurencin
Nos anos, 50, minha mãe bebericava poncho em suas reuniões dançantes.
Nos anos 70, minha irmã virava Martini com azeitona na discoteca.
Hoje a moda parece ser vodka e Red Bull nas baladas.
Estou somente comentando as drogas lícitas. Cada geração sofreu os efeitos colaterais do que consumiu antes da maioridade.
Peguei a safra mais careta do bar. Nos anos 80, eu bebia Keep Cooler nas festas de garagem. Não representava bem álcool, muito menos motivava a sair da timidez. Era o travesti de um refrigerante.
Guardo o gosto açucarado da bebida na língua. O Kiwi é eterno.
Lembro que rendi piada para muitos colegas. Aos doze anos, amigos anteciparam que Cláudia estava a fim de mim, só eu não percebia. Fraudaram bilhetes que pousaram em minha mesa na aula. Estranhava a generosidade popular pelo namoro. Quem não tem nada acredita em tudo. A guria veio para o meu aniversário. A turma batia em meus ombros:
- Parte em cima dela antes que seja tarde.
Ela estava com polainas e um casaco brilhante, uma combinação adequada para o brechó do período. Naquele tempo, a sensação é que todos usavam roupas emprestadas, colhidas ao acaso nas gavetas dos pais.
Suas franjas aumentavam as bochechas. Os brincos de argolas esperavam aias para serem carregados. Ela tinha lábios carnudos, transparentes.
Na maioria das vezes, minha coragem foi emprestada. Eu me aproximei e a convidei para dançar. Esqueci que não sabia dançar. Achei que fosse fácil, mas na hora não conseguia cantar e coordenar os passos. Se tivesse que dançar o hino nacional esqueceria a letra. Alguns já esquecem mesmo parados. Ela indicava os pés, eu embaralhava os joelhos. No fundo do quintal, com um globo improvisado de luzes, remexia num ritmo que somente eu ouvia. Distorcia, arranhava o compasso.
Demorei a me aproximar do pescoço de Cláudia, mais ainda para segurar sua cintura. Depois de um longo e silencioso ecoturismo em suas costas, tomado da respiração balouçante, arrisquei um beijo. Pulei como um cego ao seu rosto. Ela colocou as duas mãos em meu peito e pediu distância. Qualquer um entendeu como um empurrão.
- Não quero qualquer coisa contigo, Fabrício, somos amigos.
O fora surgiu no fim da música. Exatamente no último acorde. Sua voz ecoou pelo corredor, como um playback desmascarado.
A roda de impostores ria aos berros. Acompanhava nosso giro, torcendo pelo movimento de repulsa. Encarnei aposta, sofri zombaria e, por culpa do keep Cooler, não perdi a ingenuidade.
É um vício necessário. Talvez o que faço melhor. Fico pronto para me despedaçar.
Não estou sozinho. Recebo companhia a cada minuto na nau dos insensatos.
No amor, em algum momento, você terá que ser ingênuo e acreditar. Terá que largar uma vida, refazer sua vida. Terá que abandonar a filosofia pessimista, a inteligência solteira do botequim e se declarar apaixonado. Terá que ser incoerente, contradizer fundamentos inegociáveis. Terá que rasgar a certidão negativa, a proteção bancária, os manifestos de aversão ao casamento e filhos.
Não dá para ser esperto sempre. Não dá para ser experiente sempre. Don Juan e Casanova também se quebraram. Napoleão e César também foram derrotados na intimidade. A ingenuidade é um poder terapêutico. Nada pode ser mais traumático e mais libertador dos costumes. É um instante definitivo e raro no relacionamento. Quando confiamos que será diferente, que somos eleitos por uma constelação de símbolos e casualidades, quando desistimos das armas e das reservas para se apresentar absolutamente disponível e vulnerável. Não há mentiras e formalidades, frases espirituosas e comentários sarcásticos. Há apenas uma burrice infindável, o beiço e a intenção de se entregar para uma mulher seja como for.
Pena que a ingenuidade tem que acabar mal. Caso contrário, não era ingenuidade, era sabedoria.
Nos anos, 50, minha mãe bebericava poncho em suas reuniões dançantes.
Nos anos 70, minha irmã virava Martini com azeitona na discoteca.
Hoje a moda parece ser vodka e Red Bull nas baladas.
Estou somente comentando as drogas lícitas. Cada geração sofreu os efeitos colaterais do que consumiu antes da maioridade.
Peguei a safra mais careta do bar. Nos anos 80, eu bebia Keep Cooler nas festas de garagem. Não representava bem álcool, muito menos motivava a sair da timidez. Era o travesti de um refrigerante.
Guardo o gosto açucarado da bebida na língua. O Kiwi é eterno.
Lembro que rendi piada para muitos colegas. Aos doze anos, amigos anteciparam que Cláudia estava a fim de mim, só eu não percebia. Fraudaram bilhetes que pousaram em minha mesa na aula. Estranhava a generosidade popular pelo namoro. Quem não tem nada acredita em tudo. A guria veio para o meu aniversário. A turma batia em meus ombros:
- Parte em cima dela antes que seja tarde.
Ela estava com polainas e um casaco brilhante, uma combinação adequada para o brechó do período. Naquele tempo, a sensação é que todos usavam roupas emprestadas, colhidas ao acaso nas gavetas dos pais.
Suas franjas aumentavam as bochechas. Os brincos de argolas esperavam aias para serem carregados. Ela tinha lábios carnudos, transparentes.
Na maioria das vezes, minha coragem foi emprestada. Eu me aproximei e a convidei para dançar. Esqueci que não sabia dançar. Achei que fosse fácil, mas na hora não conseguia cantar e coordenar os passos. Se tivesse que dançar o hino nacional esqueceria a letra. Alguns já esquecem mesmo parados. Ela indicava os pés, eu embaralhava os joelhos. No fundo do quintal, com um globo improvisado de luzes, remexia num ritmo que somente eu ouvia. Distorcia, arranhava o compasso.
Demorei a me aproximar do pescoço de Cláudia, mais ainda para segurar sua cintura. Depois de um longo e silencioso ecoturismo em suas costas, tomado da respiração balouçante, arrisquei um beijo. Pulei como um cego ao seu rosto. Ela colocou as duas mãos em meu peito e pediu distância. Qualquer um entendeu como um empurrão.
- Não quero qualquer coisa contigo, Fabrício, somos amigos.
O fora surgiu no fim da música. Exatamente no último acorde. Sua voz ecoou pelo corredor, como um playback desmascarado.
A roda de impostores ria aos berros. Acompanhava nosso giro, torcendo pelo movimento de repulsa. Encarnei aposta, sofri zombaria e, por culpa do keep Cooler, não perdi a ingenuidade.
É um vício necessário. Talvez o que faço melhor. Fico pronto para me despedaçar.
Não estou sozinho. Recebo companhia a cada minuto na nau dos insensatos.
No amor, em algum momento, você terá que ser ingênuo e acreditar. Terá que largar uma vida, refazer sua vida. Terá que abandonar a filosofia pessimista, a inteligência solteira do botequim e se declarar apaixonado. Terá que ser incoerente, contradizer fundamentos inegociáveis. Terá que rasgar a certidão negativa, a proteção bancária, os manifestos de aversão ao casamento e filhos.
Não dá para ser esperto sempre. Não dá para ser experiente sempre. Don Juan e Casanova também se quebraram. Napoleão e César também foram derrotados na intimidade. A ingenuidade é um poder terapêutico. Nada pode ser mais traumático e mais libertador dos costumes. É um instante definitivo e raro no relacionamento. Quando confiamos que será diferente, que somos eleitos por uma constelação de símbolos e casualidades, quando desistimos das armas e das reservas para se apresentar absolutamente disponível e vulnerável. Não há mentiras e formalidades, frases espirituosas e comentários sarcásticos. Há apenas uma burrice infindável, o beiço e a intenção de se entregar para uma mulher seja como for.
Pena que a ingenuidade tem que acabar mal. Caso contrário, não era ingenuidade, era sabedoria.