A IMPORTÂNCIA DA SOBREMESA PARA A FAMÍLIA
Sou da cultura do doce. Almoço e jantar são apenas aperitivos. Eu me interesso por aquilo que vem depois para acompanhar o cafezinho.A infância me condicionou. A gente comia o básico, feijão com arroz, bife e salada, com variações de acordo com o dia. Às vezes massa, às vezes bolo de carne, às vezes pastelão, dependendo do tamanho da conta e do fiado no armazém.
Não reclamávamos da mesmice do cardápio, desde que não faltasse a cobiçada guloseima.
O escândalo residia na primeira prateleira da geladeira, com pudim ou ambrosia ou sagu ou cassata ou doce de leite ou torta de bolacha ou pavê. A mãe se esmerava nas surpresas (onde arranjava horário para preparar? Não sei, não faço nem ideia, magias inexplicáveis da maternidade).
Morava numa involuntária confeitaria. Ninguém dispensava a sobremesa naquele tempo. Guardava um espaço imaginário no estômago para não desperdiçá-la, não repetia as porções e recuava o apetite antes de me empanturrar.
Podia-se estar atrasado para o trabalho ou para a escola, não permitíamos a pressa apagar os nossos caprichos e o momento solene dos pratinhos pequenos.
Os garfos e facas não conseguiam vencer a importância das colheres.
Não se falava nada durante o almoço familiar. O silêncio imperava naquele instante, cortávamos a carne instintivamente, máquinas de triturar e moer a comida. O que se escutava se resumia aos barulhos dos talheres na porcelana.
Mas todo mundo abria a matraca milagrosamente na sobremesa. Vinham confissões, risadas, bobagens, lembranças. Éramos desconhecidos no sal, íntimos no açúcar. Abraços aconteciam mais fáceis, carinhos nos cabelos surgiam aos borbotões.
Acredito que as famílias hoje deixaram de falar porque extinguimos a sobremesa. Os filhos não mais relatam as suas façanhas nas aulas porque abolimos a sobremesa. Os pais não trocam mais beijos e juras de amor na frente dos outros porque erradicamos a sobremesa da rotina.
A glicose sempre salvou as amizades e os relacionamentos. As palavras nadam quando estamos com água na boca.
Publicado em Jornal Zero Hora em 28/11/2017