Blog do Carpinejar

A INVISIBILIDADE DA LIMPEZA

                                                                 Arte de Edgar Ende

A solidão é como limpar a casa: ninguém percebe, por mais que tenhamos a vontade imperiosa de apresentar o que fizemos.

Quando faxino a residência, sempre vou me decepcionar com a reação da esposa e dos filhos.

Não entendo como ainda insisto, e eles não têm não nenhuma obrigação de ficar me elogiando.

Mas é que me esforcei desmesuradamente em colocar o lar em dia e gostaria de ser parabenizado, festejado, aplaudido.

Eu limpo os interruptores, passo um pano nos azulejos da cozinha, esfrego o teto, elimino manchas ancestrais das panelas, espano as estantes mais altas.

Queria fazer uma exposição dos meus atos, uma visita guiada de museu pelo apartamento para meus familiares, mostrando ponto a ponto, detalhe a detalhe do que realizei.
Imagino caminhando lentamente, com a comitiva atrás de mim, interessada por cada mudança sutil:

- Aqui eu organizei as gavetas, aqui eu levantei a bancada para tirar o pó, aqui empurrei a geladeira e recolhi fragmentos de copos, aqui encerei com aquele produto novo, recomendo, é ótimo!, aqui esfreguei os vidros pelo lado de fora, acompanhe os cantos da veneziana...

Demonstraria o antes e o depois e reconstituiria toda a lavagem do ambiente. Como se fosse um corretor descortinando o apartamento pela primeira vez aos interessados.
Concluo que é uma tola quimera de minha parte.

Eles entram pela porta, apressados de seus mundos, e apenas lançam um olhar geral e pouco curioso. Comentam, de modo resumido:

- Que lindo!

Deu! Acabou o reconhecimento com uma breve fungada pelo perfume composto de lustra móveis, vanilla e detergente.

Eles cheiram mais do que olham.

Limpar a casa é ser invisível, é um contentamento muito particular, como a nossa solidão.

Só você mesmo que segurou a vassoura ou controlou o tubo do aspirador saberá o quanto foi difícil retirar aquela cabeleira do ralo, não terá com quem partilhar, é um segredo. Só você mesmo que ficou de quatro esfregando o piso saberá o quanto o brilho é de lua cheia. Só você mesmo que usa a tática do jornal para transparecer a vidraça saberá o que significa a transparência.

As pessoas somente notam quando a casa está bagunçada, jamais quando está limpa. Assim como você somente repara na geladeira quando algo apodrece dentro, jamais quando está carregada com as frutas generosamente lavadas.

A faxina é a aceitação do tempo que temos que guardar para si. É uma aula sobre amadurecimento. Transformamos a nossa personalidade não para agradar alguém, e sim porque sentimos vontade de melhorar. Mudanças silenciosas, porém necessárias.

Nem tudo será reconhecido. Mesmo assim faremos por conta própria, para a nossa satisfação.

Há alegrias que são unicamente nossas. Não dependemos dos outros.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  21/12 /2014 Edição N°18020

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