A PIOR INVENÇÃO DA HUMANIDADE
Eu tenho pouca compaixão, vejo que é uma emoção ruim, mesquinha, em que a gente sempre se sente melhor do que o outro. Não que me falte mesquinharias, mas não é o caso. Eu sou superior a raríssimas coisas. Uma delas é capinha de guarda-chuva.
Enxerguei a capa no estacionamento da universidade. Assemelhava-se a um estojo, o que mobilizou o arpão dos dedos.
Para agachar na minha idade, a curiosidade deve pagar o sacrifício. Não sobreviveria aos tempos da monarquia, onde toda vez em que o rei passava havia a obrigação de beijar o chão. Eu seria guilhotinado devido às câimbras.
Voltando a capa. O objeto atiçou a gula. Poderia conter lápis, canetas coloridas, apontador, borracha, uma escola inteira no pano. Já dividiria com os meus filhos e levaria uma lembrança para rechear as gavetas do escritório. Mas fui levantar, notei o que se tratava e repeli de volta, sinceramente frustrado. Disse que nojo, acentuando a agressividade da decepção, como se encontrasse um preservativo usado. Fui enganado, uma capinha! Ninguém no mundo irá levantar aquela capinha, a não ser que confunda como eu.
Não duvido que esteja repousando entre as vagas dos carros há um mês. Sequer um arqueólogo, daqui a dois mil anos, achará valor neste pertence. Largará os pincéis, concluindo que não recompensa o trabalho de escovação.
Depois da cerveja sem álcool, a pior invenção da humanidade é a capinha do guarda-chuva. Aposto que o energúmeno autor da façanha nem patenteou sua criação. É a mais ridícula. Uma embalagem canhestra. De natureza descartável para cobrir algo que já é descartável. Por que proteger justo aquilo que mais se perde na vida? Será que é para fingir que não esqueceremos o guarda-chuva no ônibus quando para de chover? Ficaremos mais nobres? Ou será que confiamos que a classe média e baixa está separada pelo adereço? Será um brasão de camelô?
Não é prática tampouco. Assim que se usa a primeira vez, some sua serventia. Não há como enfiar o volume do pano e as varetas de volta para a escuridão do útero. É mais uma esperança do que uma realização. Não conheço um vivente que tenha conseguido. A cabeleira estará espetada, o cabo torto, pior do que enrolar headphone num bolo coeso e diminuto como o que saiu da loja. Não experimente, será um esforço em vão. Tão complicado quanto restaurar o hímen, o cabaço.
Mas a capinha é manhosa, não resistiria se não contasse com poderes especiais. Não representa um produto de fácil eliminação. Desperta a compaixão: não gostamos dela, porém não gostamos de nos desfazer dela. Traz um egoísmo, uma culpa educada. É como chiclete, acabou o sabor, não pretendemos sujar a rua e soar como porco e forjamos sua queda involuntária. Talvez manter a capinha seja preservar a ilusão de que o guarda-chuva é novo.
É a mesma angústia daquele que não se desvencilha do papel-presente porque acha bonito. No fim do ano, vai acumular uma papelaria no armário, faltando aniversário e amigos que atendam ao farto mostruário de estampas. Não tem sentido: quem guarda os papéis de embrulho é avarento e não costuma dar presentes com regularidade.
A capinha é a prova de que somos viciados na inutilidade, o que aumenta consideravelmente minha chance de ser feliz.