A RUA DOS VENTILADORES DE PEDRO GONZAGA
Pedro Gonzaga é o vinil da poesia. O antigo renovado. Os ruídos artesanais de cada poema tocando como se fosse uma faixa na agulha.
Falso Começo significa a correção da música durante a gravação. O livro inteiro, com sessão de autógrafos nesta sexta, na Casa de Ideias, é uma tentativa desesperada de repetir a infância e a adolescência no estúdio da memória. Entender o que se viveu – ou se deixou de viver – pelo esforço em descrever detalhes e odores do passado.
Em O Mesmo, o escritor confessa: “Tantas vezes ter pensado nisso / e só agora o verso”.
O verso corresponde a um último clarão – sempre perseguido – do pensamento.
Quantas vezes ele buscou escrever e não conseguiu? O verso traduz, enfim, o sucesso de todos os fracassos de suas ideias.
Percebe-se um conjunto lírico assombradamente porto-alegrense, desvelando o calor infernal da capital gaúcha e seus bares cult fechados pela falta de clientela. Com sua experiência de músico, Pedro Gonzaga captura a dificuldade de convivência entre arte e negócio e desdobra os finais das madrugadas com humor fino, pessimista e melancólico. “Onde ensaiamos mais uma vez / aquela canção que levou à falência / o gordo juarez e seu boteco de jazz”.
Apelidaria a obra de “A rua dos ventiladores”, para lembrar os sonetos desencantados de A Rua dos Cataventos de Mario Quintana. Ventilador representa a casa na rua, a casa no mundo, a casa remota, incoerente e infantil exilada na síntese da vida adulta.
Merece constar em antologias de nosso clima o poema Condenação, que aborda o nosso verão estúpido, sem praia, sossego e respiro.
“Mais uma vez
verão dos diabos
a carne gentil
mal desvelada
salubre e daninha
a vibração da vida
antes da noite
antes dos insetos
um cheiro de lavanda
só mais uma vez
denunciará meu destino”
Ele acerta mesmo quando força a barra, mesmo quando cria metáforas luxuriosas e comparações barrocas, dignas de Jorge de Lima e seu Invenção de Orfeu: “Os pulmões são dois balões cinzentos / expostos como airosos cachos de uvas”.
Acerta porque se arrisca, acerta porque ousa, acerta porque não tem medo de se elevar do chão. Afinal, o pulmão é e sempre foi um cacho de uva. Qualquer criança não duvidaria disso.
Aviso de antemão: Pedro é um belo poeta. Belo no sentido de estuário da palavra. Estro. Destro. Com uma capacidade helenística de retratar a simplicidade da novela banal do cotidiano com a elevação do sublime.
Vinculado a toda uma geração que preza a rima e o cuidado formal – Alexei Bueno, Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Brito –, mas com uma tristeza peculiar de milonga, que só o Sul poderia produzir, o poeta deslinda remakes sensíveis das paixões na juventude. Destaco O Apartamento Estranho, quando o casal se ama entre a selva de móveis estranhos, e Linha 476, que mostra aquele ansiado beijo na colega enquanto ele aguarda o ônibus.
Seus escritos têm o circuito de elegias, um texto remetendo ao próximo infinitamente. O tempo – mediante as figuras das estações e dos meses – intensifica o tom angustiado de julgamento, de ajuizamento das contas, de consciência da finitude que só vem com idade (quando a morte deixa de acontecer somente para os outros). Lembrar seria se despedir. E se despedir é perdoar. Ou – no máximo – aceitar a perda da idealização.
Falso Começo traz um andar acima de A Última Temporada, marcante estreia na poesia de Pedro Gonzaga.
Temos um novo arranjador de nossas dores.
Publicado no Jornal Zero Hora
Segundo Caderno, p.4
Porto Alegre (RS), 23/10/2013, Edição N° 17592