Blog do Carpinejar

A TRISTE E INCRÍVEL DECADÊNCIA DOS MEUS CABELOS

Arte de Cundo Bermúdez

Meu bisavô é careca. Meu avô é careca. Meu pai é careca.

Sempre usei a desculpa da genética para fundamentar a minha calvície.

Estava destinado ao orfanato, ao lustre infinito da testa devido à maldição do DNA.

Não haveria como lutar contra a queda. Assumi, desde cedo, a batalha vã e inútil.

Mas não sou bobo. Álibis e justificativas à parte, tenho consciência de quanto os cabelos sofreram em minhas mãos. Ajudei a devastação. Apressei o desprezo. Uma esponja de aço seria melhor cuidada.

Lavei meus cabelos com barra de coco, xampu de ovo, dois em um, três em um, sabonete de glicerina.

Na infância, ele recebeu camadas consecutivas de neocid e de álcool.

Enfrentei piolhos, bactérias e fungos da pior forma: dizimando o jardim.

Prendi pontas com chiclete, arranquei pontas ao pentear com pressa.

Cortei sozinho, penico, me candidatei a experimentos de cabeleireiros.

Eu passei camomila, parafina, fiz luzes, acelerei o redemoinho.

Usei gel para endurecer, usei gosma para umedecer.

Não seguia a lua, desdenhava o sol, não me alimentava direito.

Jamais cuidei de meus cabelos.

Tomava banho fervendo diariamente, dormia com a cabeleira molhada, adotei o travesseiro como toalha.

Em meus 40 anos, experimentei fase hippie, metaleira, surfista, sertaneja, punk, argentina.

Apresentei topete, mullets, arbusto até a cintura.

Tapei as orelhas, mostrei as orelhas.

Meu destino era ser Chico Xavier de peruca.

Eu não mereci meus cabelos.

Eles eram fáceis de modelar: loiros, lisos, abastados. Mas não tive nem um pouco de juízo.

Na verdade, sofria de inveja dos meus cabelos. Ciúme dos meus cabelos. Dor de cotovelo dos meus cabelos.

O que fazer quando a moldura é mais vistosa do que o quadro?

Meus cabelos lindos só lembravam que a pintura era ruim. Meus cabelos lindos destoavam do desastre de meu rosto.

Não tinha sentido ser um John Malkovich com mechas de Marilyn Monroe. Matei a drag queen em mim.

Não poderia aceitar um cabelo mais bonito do que eu.

Hoje sou todo feio. Redondamente feio. Sem nenhuma incoerência.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 4, 9/9/2014
Porto Alegre (RS), Edição N°
17917

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