Blog do Carpinejar

A ÚLTIMA VEZ

Arte de Cézanne

Se já é difícil dar adeus quando não se ama, imagina quando se ama.

Não é simples colocar um marcador de página numa história de amor e abandonar a leitura.

Reconhecer que jamais terminaremos aquele romance. Não haverá recompensa por aquilo que se leu até ali. Ninguém nos contará o que aconteceu.

Não participaremos do final feliz: os filhos, a velhice lado a lado, a casa cheia de netos. Não estaremos juntos na derradeira linha. É morrer sem ter morrido. É desaparecer estando onipresente.

O livro de sua imaginação ficará fechado para sempre. A relação terminou antes do fim do amor. O leitor terminou antes da obra. Não descobriremos qual será o desfecho.

Não queira viver o dia de uma despedida com a consciência de que é uma despedida.

É uma cirurgia sem anestesia. Será cortado, será remexido por dentro, será costurado, sentindo cada pontada e rasgo, antecipando cada movimento com os olhos abertos. A pele vai doer como um osso, a sensibilidade pedirá piedade, o ouvido apanhará qualquer frase como uma possível sentença salvadora.

Melhor que a despedida seja involuntária, desconhecida, desavisada. Melhor que seja abrupta, de repente, improvisada.

Pois se despedir é sofrer com tudo que lhe tornava feliz. É abrir os braços para a mágoa como se viesse uma alegria em nossa direção.

É um esforço para decorar o estranho momento em que abandonaremos uma vida tão desejada.

O nós é a primeira partilha – o plural perderá seu domínio. Voltará a chamar a pessoa que ama pelo nome, como se não a conhecesse. Não mais de Meu Amor. Não mais de Minha Paixão.

É entrar pelo quarto pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É olhar pela régua que mantém a janela aberta da cozinha pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É abrir o guarda-roupa pela última vez, reconhecer o estalo da divisória de madeira, e ter noção de que será a última vez.

É fechar o registro do chuveiro pingando pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É ajeitar as almofadas do sofá pela última vez, e ter noção de que será a última vez.

É ouvir a respiração perto pela última vez, copiosa, irrefreável, e ter noção de que será a última vez.

É abraçar pela última vez e não soltar porque é realmente a última vez.

É beijar pela última vez e soluçar porque enfim chegou a inacreditável última vez.

É uma coleção de instantes definitivos. Preciosos. Sábios.

Despedir-se é guardar. Guardar é cuidar. Cuidar é nunca deixar de amar.

Quem faz questão de se despedir, quem faz questão de inventar uma despedida, é quem ainda ama. Ama muito. Ama demais. Ama loucamente.


Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS),  16/11/2014 Edição N°17985

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