A UM FILHO QUE SE FOI
Arte de Edgar Degas
Minha amiga Dora perdeu seu filho.
Ela disse que o momento mais difícil do luto foi quando ela riu de uma piada durante jantar entre amigas. Já havia completado dois anos do acidente e um ano que limpara o quarto do adolescente e oferecera suas roupas e pertences para campanha do agasalho.
Não conteve o riso, ele veio, cristalino, por uma história boba. Ela se penalizou pela alegria, acreditou que traía seu filho com a gargalhada, que não poderia mais ser feliz depois da tragédia familiar, que deveria seguir com a feição contraída e casmurra para homenagear a tristeza e avisar aos outros da longevidade e importância de sua ferida.
A lealdade tinha que ser séria, ornada de renúncias. Para indicar que a viuvez de ventre é definitiva, com o berço dos olhos petrificado em jazigo.
Ela se sentiu culpada por rir, envergonhada perante os céus, pediu desculpa ao filho, prometeu que estaria mais concentrada dali por diante e que o descontrole não se repetiria.
Mas ela quebrou a palavra, e riu novamente, como é próprio da vida superar o pesar de repente. Seu rosto agora participava da conversa com todas as rugas e covas. Bateu vontade de cobrir os lábios de batom para brilhar inteira.
Dora me segredou uma frase pura, que guardei na caixinha de sapatos de minha infância:
– Foi uma injustiça meu filho morrer, mas não poderia deixar a morte de meu filho me matar.
Doralice sempre me surpreendeu pela sua lucidez. Foi minha professora de matemática na Escola Estadual Imperatriz Leopoldina. Na última semana, passei pela frente de sua casa no bairro Petrópolis e arrisquei apertar sua campainha. Ela me recebeu com um longo abraço e me convidou a entrar. Reparei que pintava na varanda.
– Começou a pintar, Dora?
– Eu? Não...
– O que é essa tela? (eu me aproximei da moldura que reproduzia uma praia no inverno)
– Ah, é minha dor que estava pintando, coloquei minha dor a se mexer, a aprender algo de útil, e parar de me incomodar.
E concordei com seu raciocínio. Quantas vezes abandonamos nossa dor no sofá, vadia, assistindo TV? Quantas vezes permitimos que ela fique o dia inteiro dormindo, lembrando bobagens? Nossa dor sozinha, sem emprego, sem fazer nada, desejando morrer no escuro. Nossa dor comendo às nossas custas, terminando com os nervos, o casamento, as amizades.
Dor é feita para trabalhar, senão adoecemos no lugar dela.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 20/09/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16831