A VIDA É UM BRINCO
Entrei no táxi e levei um susto quando identifiquei que o motorista era surdo-mudo. Não vou mentir: levei um susto. Com todo o preconceito que ainda havia guardado em mim.
Ele não me ouviu gritando da janela que já desceria, não lia os lábios, não escutou quando quis mudar a rota bruscamente, tampouco reconheceu as buzinadas dos carros. Fiquei, diante do seu silêncio curioso e ávido, absolutamente despreparado. Um bebê grande sem saber como me comportar.
Eu não esperava receber tal motorista, ninguém espera a diferença que quebra a rotina automática.
Assim como somente na manhã anterior percebi a importância de uma escada rolante quando a minha madrasta, com lesão na bacia, travou os seus passinhos na entrada de um shopping – a escada estava estragada e ela não tinha força nas pernas para subir ao primeiro andar de outro modo. Existe gente que simplesmente não pode subir se não há acesso especial e elevador, que encontrará um beco sem saída no lugar desejado, que se enxergará impotente e paralisado, em puro desespero por não ser igual à maioria.
Idoso ou portador de necessidades especiais ou cadeirante, desconheço o sofrimento de quem precisa de uma cidade diferente do que a minha, desconheço a dificuldade da simplicidade e o quanto tenho a obrigação de ser mais educado e atento. Grosseria é não ser humilde a ponto de sair do seu confortável ponto de vista.
No táxi, ele se mostrava um homem elegante da palavra escrita. Ele dependia da palavra no papel e na tela para trabalhar: meu gêmeo.
Pediu por favor que escrevesse o endereço em seu celular e seguiu rigorosamente a rota. Eu me envergonhei do que fiz na adolescência. Se fosse jovem, conversaria alto ofensas e gratuidades porque ele não poderia me entender, debocharia de sua aparência inofensiva, colocaria a música no volume máximo com letras vulgares para me sentir superior, gargalharia a noite inteira de sua fragilidade, descreveria a situação engraçada para os meus amigos. Quantas vezes por dia, ele enfrenta o constrangimento da sátira e a violência da piada? Eu representava mais uma tristeza do mesmo.
Antes de ser um homem, já fui um porco, uma hiena, um urubu. É muito complicado ser homem, ter a decência de um homem e não a inconsequência de um bicho. O que vejo de animais truculentos na rua rindo de quem tem uma carência.
Não trocamos nenhuma impressão durante a viagem inteira até que passamos pelo Rio Guaíba, e a lua cheia e alaranjada boiava soberana nas águas escuras. Ele me olhou com ternura, um olhar de quem atravessa a longa avenida da minha indiferença. Apertou a sua orelha direita para apontar a beleza da lua. Em retribuição, apertei com os dedos a minha orelha direita. Colocamos os dois naquela hora os brincos invisíveis da amizade. A vida é um brinco para quem escuta o coração.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p.4
17/05/2015
Edição 18527