Blog do Carpinejar

ABRAÇO DE JUDAS

Arte de Cínthya Verri


Todo presidiário tem dez minutinhos de sol, um recreio para banhar o rosto com a luminosidade da manhã.

Já quem é livre talvez passe 24h longe de um pátio, desprovido de um mísero contato com a luz do dia. Talvez não abra a janela, sequer levante as persianas, para espiar o azul do horizonte e criticar a temperatura dos relógios da rua.

Quem é livre age com culpa. Encarna-se na profissão como um condenado, debruçado a atender os múltiplos sinais do celular, laptop, iPad, televisão.

Sempre encontra um tempo para adiantar uma tarefa, mesmo que seja necessário abdicar do almoço, mas nunca abre frestas para se sentir no mundo.

Suas frases mais comuns são que não tem escolha; precisa se sustentar; há muito a fazer.

Aparentemente solto, está confinado na solitária do seu trabalho — e não percebe o valor de respirar a cerração, espirrar quando surge um vento mais gelado e descascar tangerinas no meio-fio solar, fugindo do lado das sombras.

Esquece que o centro tem praças, que as praças têm bancos, que nos bancos caem máscaras de oxigênio das árvores.

Esquece o livre-arbítrio, envolvido na onipotência de desdenhar da vida.

Se fossemos samambaias, estaríamos mortos. Secos. Murchos. Somos vasos e demoramos a rachar. A longevidade não é saúde.

Até abraçar desaprendemos. Ninguém mais abraça com vontade. Com sinceridade de velório.

Odeio abraço falso, como aquele beijo de frígida, no qual a face bate na face e os lábios se transformam em beiço.

Abraço tem que ter pegada, jeito, curva. Aperto suave, que pode virar colo. Alento tenso, que pode virar despedida.

É pelo abraço que testo o caráter do outro. Não confio em quem logo dá tapinhas nas costas. A rapidez dos toques indica a maldade da criatura.

Não sou porta para bater. Nem madeira para espantar azar.

Abraço com toquinho é hipócrita. É abraço de Judas. De traidor. O sujeito mal encosta a pele e quer se afastar. Pede espaço porque não suporta os pecados dos pensamentos.

Devemos fechar os olhos no abraço, respirar a roupa do abraçado, descobrir o perfume e a demora no banho.

Abraço não pode ser rápido senão é empurrão. Requer cruzamento dos braços e uma demora do rosto no linho.

Abraço é para atravessar o nosso corpo. Ir para a margem oposta. Nadar para ilha e subir ao topo da pedra pela gratidão de sopro.

Sou adepto a inventar abraços. Criar abraços. Inaugurar abraços. Realizar um dicionário de abraços. Um idioma de abraços.

O meu é o de cadeira de balanço. Giro nas pontas dos pés. Não largo, os primeiros minutos são para sufocar, os demais servem para o enlaçado se recuperar do susto.

Não entendo onde terminará o abraço. Se a pessoa vai chorar ou vai rir. Abraço é confissão.

Dez minutinhos de sol e de liberdade.



Crônica publicada no site Vida Breve

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