Blog do Carpinejar

AEROMOÇA DO CINEMA

Carine explica o filme, mas promete não entregar nenhuma pista sobre o final.Fotos de Nauro Júnior.

Não existe espectador desavisado em Rio Grande, município de 195 mil habitantes, no extremo sul do Estado, a 311 quilômetros de Porto Alegre. Todos conhecem o filme que vão assistir. Ou ficam conhecendo às vésperas da projeção.

Talvez seja o único lugar do mundo que tem horóscopo cinematográfico.

Você entra na sala e não acompanhará, como de costume, o trailer dos lançamentos. Haverá uma mulher uniformizada de vermelho, que explicará a história a ser exibida.

Na frente da tela, Carine Duarte de Cantes, 32 anos, realiza uma sinopse falada da obra. Antecipa o enredo em três linhas.

– Boa tarde, bem-vindo ao Cine Dunas e a Kung Fu Panda 2. Neste filme, Panda terá que lutar junto aos seus amigos contra um vilão que deseja destruir a China...

Carine conta com um microfone natural no pulmão. Desafia o silêncio com sua voz jazzística, alcançando notas de coro gospel.

– É que já fui telefonista de motel – ri.

Ela é a porta-voz das gentilezas do casarão antigo, que mantém os adornos portugueses do prédio original de 1933.

– Juro que não entrego o final, digo apenas o comecinho – brinca.

O Cine Dunas é a única rede na cidade, adepta do cinema de calçada, com uma filial no Centro (desde 2008) e a sede na praia de Cassino (2005).

Cada sala tem duas sessões por dia, de terça a sexta, às 19h e às 21h, e quatro no final de semana, também nos horários das 15h e das 17h. Com exceção de sábado e domingo, a média de frequência é de 80 pessoas ao dia, que pagam R$ 10 de ingresso.

– Para os saudosos da figura do lanterninha e do pianista, temos a explicadora, uma função antiga, que personaliza o nosso contato – afirma o proprietário Cleyton Martins Abreu, 51 anos.

Carine desfila entre as poltronas de couro com a elegância envaidecida de atriz. Transformou-se numa lenda do lugar, musa dos cinéfilos e tia predileta das crianças.

Interage como se fosse uma aeromoça. Usa os braços para mostrar as saídas de incêndio e as recomendações de respeito como não fumar e desligar o celular. Por pouco, não recebe aplausos.

– Estudo a tarefa em casa e me concentro. Uma palavra errada, um simples tropeço e estrago a expectativa do público.

Mas o sucesso não subiu à cabeça; trabalha duro, sem parar, até meia-noite: atende na bomboneria, apronta café, prepara a pipoca, retira o lixo das poltronas e recolhe os ingressos na entrada. É olhar para o lado e ela desaparece, para assumir uma nova atividade.

– Ainda não sou a projetista – esclarece.


Devido à mania de decorar argumentos, sua memória ganhou a velocidade de uma enciclopédia. Para o contentamento de sua filha Endyana, 15 anos, que vive tirando dúvidas do roteiro de alguma estreia.

– Amo os pequenos resumos, sei centenas de cor, são meus poemas – compara.

O que deseja fazer, e que não teve chance na adolescência, é namorar no cinema e dividir a pipoca, o grande teste de relacionamento.

– Se o homem pede um pote somente para ele não é romântico. Pipoca foi feita para ser dividida.

Solteira, de cílios grandes, a estrela do Cine Dunas aguarda seu galã surgir antes dos créditos finais.

– Queria ter alguém para curtir, abraçar e beijar no escuro da sessão. De repente, esquecer o filme em nome de uma história de amor.








Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 28, 9/7/2011
Porto Alegre, Edição N° 16754
Veja a descrição do filme na voz de Carine Duarte de Cantes.

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