AMEAÇADOS DE EXTINÇÃO
Em passeio ao zoológico com os filhos, quase choro diante do aviso de “extinção” nas placas explicativas sobre os bichinhos. Aquele é um dos únicos animais do mundo e está enjaulado — que sina.
Eu também enrubesço com o extermínio de várias espécies urbanas. O filador de cigarro, por exemplo. Já é complicado encontrar alguém com fogo, imagina pedir um cigarro emprestado. O filador é uma subcategoria do fumante. Como o primeiro é desagradável, o segundo é detestável. Sua existência está fadada ao fracasso.
Outra raça ameaçada é o caroneiro. Peguei excessivas caronas em final de festa na adolescência; era um profissional. No começo, esperava o convite que nunca vinha. Caminhava, lento e sozinho, pela rua escura, aguardando que uma alma generosa percebesse que não tinha carro. Até um flanelinha seria mais chamado do que eu.
Não funcionava a saída chapliniana. Desenrolava o mapa da cidade tão deprimido quanto qualquer assaltante que pudesse confiscar meus trocados. Mais próximo da concorrência da bandidagem do que do papel de vítima.
Tomei gosto pelo desespero e aprendi macetes do ofício. Perdi a vergonha. Avisava de cara a todos no início do encontro que o trânsito estava terrível e que ainda desci na parada errada. Pronto: sabiam que estava a pé. Na hora de perguntar o nome, aproveitava e perguntava onde a pessoa morava. Direto. Tive êxito na empreitada. Cogitei que seria uma vocação e poderia atravessar os continentes com o polegar deitado. Tanto que esqueci os nomes dos amigos, mas nunca seus endereços.
A tática surtiu efeito, mas não consegui manter o sangue-frio. Carregava um remorso misterioso, um mal-estar do abuso. Pensamentos terríveis e incessantes feriam o orgulho e me tiravam o sono. Fazer com que um colega alterasse o trajeto surgia como uma dívida impagável. Agradecia pedindo desculpa. Desejava me livrar do favor. Mal saíamos e dizia que ali estava bom. Sussurrava ao generoso motorista me largar em qualquer esquina. Para o caroneiro, estar perto de casa já é a própria casa.
Assim que tirei a carteira, troquei de figura, encarnei a função avarenta da história. Procurava fugir dos chatos sem veículo nas saídas dos bares e das baladas. Menosprezava o grau de amizade, achava um modo de sumir. Nem me despedia para não gerar propostas. É óbvio que fracassava e ficava irritado. Aparecia um pangaré bem quando voltava com uma garota e usaria o trajeto para convencê-la a ficar comigo. Frustrava meus planos. Não dava para seduzir e ser taxista ao mesmo tempo.
Ou, quando casadinho, gostaria de ir a um motel e traçar uma rota romântica inesperada. O amigo fingia não notar nada de estranho no ar e congelava a preliminar com sua direita e esquerda, direita e esquerda.
Praguejei os pedestres abusados por uma década, criei listas de abaixo-assinado contra suas insistências, invoquei meus direitos.
Minha vingança foi longe demais. Errei a medida. Observo com desalento o término do caroneiro. Dói uma saudade desse componente trágico e avulso da madrugada. Persiste em meu peito uma nostalgia infinita do banco de trás. Os carros estão cada vez menores. Com smart, só há dois lugares. É um reinado, com tronos exclusivos ao rei e rainha. Impossíveis a negociação, o fiado, a vassalagem. É uma avareza explícita.
Logo inventarão um veículo com um único assento, daí será mais fácil e honesto ir de bicicleta.
Crônica publicada no site Vida Breve