AMIZADE É UM TRAVESSEIRO
Arte de Cínthya Verri
Não sou preguiçoso, mas exigente. Os esportes me cansam fácil. Não me prendem a atenção.
Eu me inscrevo na musculação, e desisto no segundo mês. E me inscrevo na plataforma, e já não apareço na quarta semana. E foi igual com tênis, rapel, remo.
Compro as roupas, os acessórios, espalho minha mudança de espírito aos quatros ventos, posto fotos nas redes sociais e abandono o projeto logo que perde a novidade.
Apesar de me entender, não suporto mais a culpa e as excessivas explicações em casa.
A família me critica abertamente, chama atenção da minha flacidez, da atrofia dos braços. Filhos tiram sarro, dizem que a minha barriga é tanque de lavar roupas. Esposa lamenta a fraca insistência. Pais debocham do dinheiro posto fora. Acordo e durmo sob fogo cruzado de acusações da minha má vontade.
Tomei uma atitude definitiva, superior à cirurgia de estômago e visita a candomblé.
Convenci Mário Corso a me acompanhar nas atividades esportivas. Com uma amizade, é mais fácil acordar cedo. Um telefona para o outro, revezamos caronas, relatamos as melhorias da aparência.
Ele seria meu nobreak. Quando minha energia caísse, seu incentivo me ajudaria a ficar de pé. Seguraria a barra nos frequentes apagões de personalidade. Permitiria o tempo necessário para meu cérebro permanecer estimulado até reaver a eletricidade.
Nos matriculamos na academia da Praça Tamandaré.
Era outra história. Como não tinha pensado nisso antes, um amigo termina com a solidão dos aparelhos, espanta a tristeza dos halteres descascando nos cantos (como são melancólicos os halteres perdendo a pintura!).
O amigo é o nosso mais leal espelho. Teria alguém para trocar impressões sobre os colegas e professores, faríamos piadas sobre nossas obsessões, seguiríamos a vida com a disposição de velhos cúmplices.
A imaginação já me esculpia num novo Anderson Silva, eu fecharia meu umbigo com o inchaço dos músculos. Adeus, pneus que serviam de balanço ao meu amor.
Nos primeiros dias, foram de arrepiar. Reavi a adolescência. Acordava furando as nuvens como uma britadeira. Tomava suplemento de vitaminas, queria correr nos finais de semana e jogar futebol noite sim noite não. Um Sansão careca, como nunca se viu no cinema e no bairro Petrópolis.
No início, acertamos o encontro direto na academia. Sem erro. Transcorreu um mês e inventamos de confirmar por telefone. Qualquer abandono de causa surge quando um dos dois pede confirmação por telefone. É criar uma condicional para a inércia acabar com a reabilitação.
Corso me ligava de manhãzinha, pelas 6h.
– Acho que não vou hoje, está frio.
– Então, tá, eu também não vou, para não deixá-lo atrasado nos treinamentos – respondia.
– Combinado.
Toda manhã, Corso me telefona avisando que não irá por algum motivo: dormiu tarde, sobrecarga de trabalho, visita da sogra.
Nem mais estamos inscritos. Mas ele é leal, continua ligando. Atendo como um despertador, concordamos em dormir mais, abraço minha mulher de conchinha por mais uma hora.
Nada como um amigo para me ajudar a não fazer nada e não arder de remorso junto aos familiares.
Hoje ponho a culpa nele.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira