AMOR É ALERGIA
Vários leitores me perguntam quem é a cadela que está na contracapa do meu livro Mulher perdigueira.
É Cora, animalzinho branco de minha namorada. Tão estapafúrdia que fica engraçada. Eu me identifico. Sou um desajeitado que se esconde na irreverência.
Cínthya comprou como se fosse um maltês. Desejava um cão manso, comportado, obediente. Procurou um criador registrado no Kennel Club. Pagou R$ 600,00. Assim que recebeu a encomenda, uma veterinária alertou da trapaça, não havia pedigree naquela desengonçada figura. Enfurecida, a namorada sustou o pagamento. O vendedor foi atrás, convenceu que se tratava de um tipo especial de maltês, Cínthya ingenuamente caiu na conversa e liberou o cheque.
Cora nada tem de quieta e disciplinada. Uma vira-lata imprevisível. Muda de estação a cada três horas.
Sua aparência é circense. Tem duas orelhas assimétricas. Uma permanece deitada enquanto a outra está pelo avesso. No começo, tentava ajeitar a aba, mas logo comprovei a inutilidade do esforço. Para acentuar a comédia, é vesga, vive observando seu nariz, pensa que o focinho é mais um osso a ser enterrado.
Ela é o cão mais carente que conheci. Treme quando vamos sair ao trabalho. Forja um ataque epiléptico. Impressionante como inventa febres — pena que não tinha seu dom na infância para escapar das provas finais.
Cora depende do recolhimento de apartamento: três dias na rua e morre. Cheia de fragilidades, rações especiais e remédios ultramodernos. Adoece depois de interagir e brincar com cães na praça e na residência de amigos. Visitou sua quinta clínica em um ano e não encontramos uma poção miraculosa que resolvesse as pendências de pele. Ela tem mais xampu do que sua própria dona.
No bairro, tornou-se famosa pelos rompantes antissociais. Morde os calcanhares das pessoas na rua e salta em motoqueiros. Ela não caminha, nos arrasta, a exemplo de farejador de drogas da polícia. Buscamos adestrá-la, porém regride com a mesma facilidade em que avança. Passear com ela significa se incomodar com metade da vizinhança.
Cora é um babuíno, um gato, um hamster, um coelho, raramente é um cachorro. Às vezes é um travesseiro. Durante o dia, pesca roupas sujas da cesta da lavanderia para dormir em cima. Sente prazer em sestear no cheiro de Cínthya.
Não podia ser mais problemática: uma calamidade, capaz das mais altas histerias, de trepar com a cama, de estraçalhar óculos, de pular a escada, de latir para plantas. Ao mesmo tempo, é um bebê de bolso. Levá-la no colo é receber a fincada suave e generosa de suas unhas, pedindo para nunca ser abandonada. Tomada de felicidade, morde o rabo. Arrebatada pela tristeza, geme gregoriano.
Sofre por antecedência. Ao quebrar algo, refugia-se debaixo do sofá. Enxergá-la ali é descobrir que aprontou. Nem precisamos localizar as provas. Entende tudo rápido, assim como esquece tudo rápido.
Tem complexo de Gulliver. Foge de borboletas. De baratas. De moscas. Já a testemunhei correndo de formiga. Menor o bicho, maior é seu medo. Por contraste, não guarda nenhuma noção do perigo e enfrenta cavalos, vacas e pit bulls.
Cora já engoliu veneno de rato. Sobreviveu. Já engoliu botões de camisa, ímãs de geladeira e teclas de computador. Sobreviveu. Confunde todo rosto que se aproxima com porta de geladeira. Senta e espera um farelo com as roldanas dos dentes. Uma mendiga especializada em estragar um jantar romântico.
Tenho incompatibilidade com Cora. Nossa relação é impossível. Um amor alérgico. Seus pelos provocam o diabo da rinite. Uma tosse seca, irritante, interminável.
Cínthya diz que o mal-estar é culpa do cigarro, faz vista grossa e cria condições para a invasão da pestinha em nossa cama. Procuro dissuadir a entrada, tranco a passagem do corredor; Cora acha um jeito de aparecer. Acordo com longos fios grisalhos pela camisa.
Quanto pior o cachorro, mais nos apaixonamos.
Crônica publicada no site Vida Breve