AMOR EM VÃO
Arte de Eduardo NasiEle estava sentado numa cadeira de rodas aguardando atendimento, preso ao braço do soro. Tinha 80 anos para mais ou 80 anos para menos + a doença.
Sua senhora baixinha e de coque, amorosa e atenta, em cadeira próxima, com olhar de agulha de crochê, recebeu a ficha de atendimento da enfermeira.
Conferiu, e não se guardou. Mudou radicalmente de feição, embrabecida. Deduzi que fosse cobrança indevida do hospital, mas não era. Questionou o marido:
- Você colocou aqui que não tem religião! Como que não tem religião?
- Não me lembro.
- Como é que vai esquecer Deus numa hora dessas?
- Não sei. Não sou praticante.
- Mas Deus é praticante contigo, vive te salvando.
- Não tem importância este detalhe.
- Como é que não tem importância? Acha que Deus não lê os prontuários médicos?
- Só o que faltava, claro que não lê.
- Lê sim, para ver se assumimos ou não a nossa fé.
- Não exagera, mulher. Está sem dormir, cansada, e vem delirando.
- Delirando? Não, precisa mudar aqui, com sua letra. Calma aí, pegarei uma caneta da mesma cor.
- Não precisa, deixa assim. Não vou ficar rasurando o prontuário.
- Prefere ficar desassistido?
- Deus não é um plano de saúde.
- É mais do que um plano de saúde, é o princípio, o meio e o fim.
- Pelo jeito, estou no fim.
- Não seja teimoso, hômi. Não entrega os pontos agora.
- Não declarei minha religião, não é um pecado mortal.
- É um pecado, sempre peço para rezar uma missa para a tua recuperação. Tudo o que faço não tem sentido: as velas, o dízimo, as promessas. Arruma, nesta linha, quer os óculos? Onde colocou os óculos?
- Não mudarei nada, não tenho religião.
- Não tem religião, é? Então vou embora.
- Por quê? Para de ser tola! Não me deixará sozinho, o médico não chegou.
- Tola coisa alguma. Se não tem religião, não estamos também casados. Não existiu a nossa cerimônia.
Ela arrancou sua aliança, jogou no chão, tomou sua bolsa caramelo e virou as costas.
Enquanto o velho se esforçava para girar a cadeira e recuperar o anel, ainda o ouvi resmungar:
- Deus, dai-me a paciência.
Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
20/05/2015