ANTES DAS FOTOGRAFIAS
Arte de Rufino Tamayo
Sofri com a separação dos pais. Carregava a sensação de que tinha sido difícil, percebo agora que foi um desastre. Ao mexer no baú da família para catar flagrantes da infância, encontrei o álbum de casamento dos dois. Capa dura, nomes dos noivos em relevo dourado, livro grosso para eternidade mesmo, resistente às traças e porões.
Fiquei intrigado no momento de folheá-lo. Tive que sentar e interromper a pressa.
Voltei no tempo. No papel vegetal entre as páginas, havia desenhado o contorno das fotografias. Copiei à mão cada imagem, colorindo depois. São mais de 50 folhas transparentes preenchidas, duplicando pai e mãe no altar, reproduzindo convidados e bastidores da festa.
Na época (mentalidade de criança ferida), fiz uma cópia reserva das cenas. Raciocinei que os dois não seriam mais amigos, jogariam duas décadas de casados no lixo e providenciei um backup primitivo com o lápis Faber Castell HB2. Ansiei preservar a história usando as armas do estojo de 1ª série. Aproveitei meu conhecimento de copista do Pernalonga.
Lembro que não dei mole na separação: briguei com os irmãos, esperneei no sofá, chantageei no carro, planejei greve de fome, renunciei futebol, peguei recuperação, chorei no mercado, passei recreio no SOE, ia de um lado para outro da sala ao quarto para diminuir a distância das palavras. Olha, coitados de Carlos Nejar e Maria Carpi, criei um inferno para reconciliá-los, demorei a constatar que o paraíso deles também não era o meu.
Diante do flashback, eu me pus a comparar o que fui com o que sou. Todos, quando pequenos, sofrem com o divórcio dos pais, indicativo de trauma, término da idealização e receio de parar num orfanato. E todos, quando maduros, consideram a separação necessária e natural.
É impressionante o quanto nos esforçamos para manter os pais juntos, e não realizamos quase nada pelo nosso casamento na vida adulta.
E se lutássemos para entender nossa esposa como defendemos nossa mãe? Se realizássemos metade da birra feita com o pai durante a despedida de nossa mulher? Se trocássemos o orgulho da cobrança pela cumplicidade emocionada do erro? Se desejássemos falar menos e ouvir a voz dela mais um pouco?
Se fôssemos meninos para sempre, nenhuma separação seria fácil. O amor não morreria fácil. O papel vegetal protegeria as fotos.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 26/07/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16773