ARCA DA ALIANÇA
Desvendei o motivo que faz um casal envelhecer junto. É um sinal prosaico e mínimo. Não se comenta de propósito, para evitar a escatologia e o emprego ostensivo. Fica-se como algo subentendido.
Não conheço amigo que vença o boicote; admitir sua existência é jogar contra o próprio relacionamento.
Representa um segredo de convivência a dois. Maior do que o sexo.
Aliás, pais e mães das gerações passadas foram condenados por não esclarecer o sexo aos filhos, mas alguém consegue explicar sem parecer ridículo? Dou graças a Deus que meu pai não teve nenhuma conversa séria comigo, que não colocou uma camisinha numa fruta, acho que nunca mais comeria banana em minha vida.
Tal mistério também não permite didática. É um dos raros códigos que se mantém em sigilo. Para que os aproveitadores não abusem de seu significado. Para que os porcos não se sintam orgulhosos.
Difícil traduzir em palavras, como toda onomatopeia.
O impulso inicial é ofender e logo gritar no meio da noite: “Fora daqui!”
Ainda há os que bancam os compreensivos, acordam e avisam que não enxergam maldade na atitude – terminam por inspirar o exemplo e cortam o casamento pela raiz.
Ainda há os que exaltam a diversão do gesto – não duram muito.
Ainda há aqueles que não superam o nojo e escolhem dormir em cômodos separados com a desculpa de que são modernos e não abrem mão do banheiro próprio.
Nem Mussolini, nem Madre Teresa de Calcutá, o certo é adotar a não-violência de Mahatma Gandhi.
Um casal permanecerá unido pelo resto da trajetória no momento em que um perdoar o outro pelo pum na cama. É perdoar, não tolerar. É simular que não se ouviu ou não sofreu com o cheiro. A distração é estratégica, inibe o avanço dos maus modos.
Apenas quem ama se controla. É capaz do mais alto sacrifício respiratório. No instante do estalo, finge-se de estátua. Não pensa em nada e espera que o ar do quarto se renove naturalmente.
É evidente que nossa companhia já estará envergonhada. Não precisamos notificar ou lembrar na manhã seguinte. Desde a escola não existe culpado pela flatulência.
Suportar o ronco do marido ou da esposa ajuda a chegar às bodas de cristal (15 anos). Mas silenciar diante do incômodo ruído é garantir as bodas de prata, de pérola, de coral, de rubi, de platina, de ouro, toda a riqueza interior, é tomar de assalto a joalheria inteira de aniversários.
Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, coluna quinzenal, p. 3, 21/02/2011
Porto Alegre (RS), Edição N° 16618