ATÉ A SORTE TEM LIMITE
Foto de Gilberto Perin
Pode escapar ileso de um acidente ou sobreviver a uma moléstia séria: em vez de se abrir à fragilidade do cotidiano, você se fecha totalmente e jura que é imortal e nada irá atingi-lo. Assume uma onipotência na família e nos relacionamentos, achando que é mais forte do que a morte e não muda a insensibilidade do trabalho e das tarefas.
Não se deu conta que recebeu o aviso prévio da vida. Desprezou a notificação dos limites. Desdenhou da censura das fronteiras.
É um reflexo natural de quem se aproxima do fim e não tenta recuperar a qualidade dos laços, desfazendo inimizades e realizando os desejos mais genuínos. Acredita que o acidente foi impessoal, uma casualidade externa, jamais uma necessidade interna, que não é uma formalização do término de sua história por aqui. O envolvido favorece, portanto, o desfecho impiedoso, quando deveria aceitar a ampulheta virada, acolher as dúvidas e questionar o sucesso de sua existência no espaço que lhe sobra.
Mas a invencibilidade desafia a prevenção. E o comum é empreender a viagem de volta com a reserva do tanque e parar abruptamente no caminho.
Assim, quem transa sem camisinha e contrai uma doença venérea, suspira de alívio que não é HIV, HPV e sífilis, e continua tendo relações sem proteção. Não assumiu a gravidade da advertência, pelo contrário, reforçou a ideia de que jamais vai lhe acontecer algo de ruim. Troca a felicidade de posteriores cuidados para comemorar o provisório alívio.
O mesmo ocorre com quem dirige bêbado em alta velocidade. Mesmo ao colidir, não remodela a sua conduta depois, pois permaneceu vivo longe de desfechos dramáticos e apenas enfrentou danos materiais.
A trégua não corresponde ao encerramento da guerra, refere-se a um período para se recompor e acertar as contas. Por isso todo doente terminal tem uma alta antes de cair definitivamente. Joga-se de volta ao mundo em que estava, carregado de obrigações, e não vê que não desfruta de condições para seguir de modo igual. Ele pensa que pode tudo, porém só ganhou um tempo para se despedir.
O destino sempre é educado e oferece um sinal antes de levá-lo embora. A noção de que a tragédia é exclusividade dos outros embota o entendimento da mensagem.
O aviso prévio deveria ser aproveitado como uma sobrevida para colocar a alma em ordem. Ou para legar saudade, e não culpa, a aqueles que ficam.