ATRÁS DO BALCÃO
Arte de Cínthya Verri
O privilégio irrita. É esperar numa fila e um barbado que acabou de surgir ser chamado antes. Nossa paciência não é recompensada pela igualdade. Não há problema nenhum em reconhecer o trabalho e a importância de alguém, desde que eu não seja envolvido como moeda no pagamento.
* * *
Mas o que mais irrita de verdade é perder o direito a ponto do direito do outro parecer um privilégio.
Rubem Braga foi pedir um ovo numa lanchonete paulista, o olhar armado com os talheres das sobrancelhas:
— Ovos fritos, por favor?
— Não, não temos ovo — o atendente respondeu para servir o sujeito ao lado com farta porção de omelete.
* * *
A humilhação é maior do que a raiva e retira as palavras — talvez seja uma raiva fria e demore a ser engolida. O cronista não teve reação, não brigou, não revidou, guardou suas sobrancelhas no guardanapo do rosto e tomou as dores da rua.
* * *
É um pouco assim no amor. Ou muito assim. O marido recusa ovos estrelados para esposa enquanto prepara omeletes para as demais freguesas.
* * *
É terrível para uma mulher acompanhar seu companheiro feliz com os amigos do futebol, disposto e incansável para missões profissionais no final de semana; e totalmente ausente em casa. Não de presença, mas de espírito. E um espírito analfabeto que sequer escreve cartas do além.
* * *
É ele pisar no capacho que fecha o rosto, é ele entrar na sala que resmunga. Não aceita carinhos, conversas, delongas. Sucumbe à mecânica da rotina: tomar banho, jantar, assistir televisão e dormir. Quase como um recruta em serviço militar, adotando uma série de tarefas físicas para não pensar.
Já porta afora saca gracinhas com as balconistas, diverte-se com o porteiro do prédio, ri sem parar ao telefone.
* * *
A esposa conclui que vem sendo um monstro, responsável pela desgraça familiar. As mulheres sempre assumiram a culpa — os homens sempre recorreram ao ódio.
* * *
Ela se ressente de não agradá-lo como no início. Vai ao terapeuta, inscreve-se em ginástica sexual, frequenta yoga, ocupa o dia inteiro criando alternativas para salvar o relacionamento.
* * *
Não há ninguém para avisá-la que não deve sofrer pelos dois, seu marido é que deixa o melhor para o mundo e o pior para ela.
* * *
O amor não é um privilégio, é um direito.
* * *
Se não entendeu, por precaução, é bom lembrar ao marido que faltam ovos em casa.
Crônica publicada no site Vida Breve