AUDITÓRIO DE MINHA ESCOLA
Texto: Fabrício Carpinejar
Arte: Eduardo Nasi
Minha escola tinha mistérios. Quando o professor faltava por motivo de doença, a direção cancelava a aula e a turma seguia para um apertado auditório assistir documentários alemães. A exibição não poderia ser considerada diversão.
O velho projetor rodava filmes preto e branco e mudos, sem pé nem cabeça, com lições de higiene de adolescentes – é o que me recordo. Eles escovavam os dentes, limpavam as orelhas, acordavam cedo e nenhum deles reclamava do banho de água gelada.
Eu, com meus oito anos e remelas fundas, não compreendia o motivo da exibição, mas acho que a ignorância fazia parte do processo de aprendizagem.
O que me apavorava na sala escura com cadeiras de fórmica era a série de vidros de cobras, escorpiões e fetos.
Não dominava o sentido da vida, muito menos entendia o que significava a morte, de repente observava uma criancinha presa num pote de pepino: os olhos cinzentos de ET e os braços cruzados de gravetos. O que ela fazia lá?
No início, desconfiei de sua realidade, raciocinava que representava uma imitação bem feita, um trabalho artístico, uma massa de modelar convincente. Até que o Anselmo se desentendeu com Alexandre – não paravam de brigar pela melhor cadeira na sala – e empurrou o colega com força na parede.
O impacto tremeu a estante e um dos frascos caiu e se espatifou em minha frente. O bebê liberto da conserva saltou em minhas pernas. O líquido com cheiro forte, talvez éter, molhou completamente a calça.
E respondi a um impulso sobrenatural e estranho de não temer a pequena criatura. Não houve nojo e receio. Eu tentei salvá-la. Eu tentei segurá-la. Eu tentei ampará-la entre as mãos. Agi primitivamente, como um bicho protegendo a sua cria menor e indefesa. Num ato reflexo, colhi a criança no ar. Não esqueço o pasmo, o pânico de apertá-la contra o meu peito.
Foi o meu primeiro e único aborto espontâneo.
Publicado em Vida Breve
Coluna Semanal
27.07.2016