Blog do Carpinejar

BAILE DAS ORQUÍDEAS

Airton diz que a música nativista é um estímulo para as plantas crescerem. Foto de Emílio Pedroso

Antes do telhado de vidro coar os primeiros raios de sol, Airton Moacir Nedel, 54 anos, pega seu rádio de pilha e vai visitar a estufa de flores. Ele é o principal orquidófilo de São Paulo das Missões, cidade a 537 quilômetros de Porto Alegre, conhecida como Suíça gaúcha pela semelhança geográfica com o país europeu.

São 6h, a estação local toca Os Serranos. A acanhada população de 6,7 mil habitantes recém está se despedindo dos sonhos noturnos e Airton já mergulha as luvas no jardim particular de mais de mil orquídeas de 40 espécies. Ele não é um colecionador comum. Cultiva suas plantas ao som alto da música gauchesca. E diz que funciona, que elas se mostram mais viçosas e atraentes, com dobro de exuberância nos ornamentos.

A gaita de Borghetti, a voz do Gaúcho da Fronteira e a poesia dos missioneiros costumam polinizar o ambiente, formando o adubo perfeito para a floração das prendas.

O acervo que conserva com capricho durante duas décadas é, ao mesmo tempo, um recorte do Éden e um show gaudério.

– Tiro a flor para dançar chula. Preparo seu andar para exposição, que é o baile final – comenta.

Airton mudou desde que passou a tratar de orquídeas. Tabelião aposentado, casado há 31 anos com Elaine, era duro, de poucas palavras e vivia organizando festas típicas longe de casa. Hoje é caseiro, meigo, não se envergonha de chorar e de explicar seus sentimentos.

– A orquídea é uma terapia, é desembrulhar uma noiva todo dia, é casar toda manhã – derrama-se.

Segundo Airton, a orquídea gera uma atenção especial que valoriza seus donos. Como ela morre somente atacada ou abandonada, a durabilidade depende da dedicação.

– Pode ser imortal pelos nossos cuidados, entende nossa responsabilidade? Qualquer um se enxerga importante.

O passatempo fisgou seu interesse por truque da mãe, que mandou uma muda de LC. Remo Prada de presente para cada um dos cinco filhos.

– Se ela fez um teste de herança, estou rico. A minha é a única que se manteve viva – graceja.

A partir daquele momento, ele tomou gosto de cuidar. Cuidando de algo, cuidava de si.

– É a planta mais carente que existe. Sem carinho, ela murcha, desaparece. Duas semanas sem ninguém, a estufa é terra de cemitério, lugar de assombração.

De um hobby, onde dedicava menos de uma hora, converteu-se em obsessão, movido a um turno inteiro de vigília. Airton (ou, simplesmente, Alemão) assumiu a presidência do Polo dos Orquidófilos das Missões, representando também Santo Ângelo, Santa Rosa, Ijuí, Carazinho, Santiago e Ajuricaba, disseminou a cultura pela cidade com mostras anuais e formou uma liga local de vinte produtores.

– Mexo, fuço, inspeciono para prevenir o pior, em especial à cochonilha, pó branco que estraga as hastes. Não largo meu CTG.

Ele não protela nada, não adia a ternura. Tudo para não reprisar a tragédia que foi encontrar duzentas peças abatidas de uma única vez, pelo fungo Fusarium.

– Dói perder uma delas, porque não existe orquídea feia.

Airton é um romântico. Com cabelo escovinha e olhos claros, elabora surpreendentes teorias de convivência. Diz que homem que dá rosa pretende agradar a mulher, por sua vez sujeito que oferece orquídea confessa verdadeiramente sua paixão.

– Matamos a orquídea mais facilmente com o excesso de água do que pela falta. Assim é o casamento. Temos que deixar o outro respirar.

Enquanto me despeço, ainda é possível escutar o refrão de Obrigado, Patrão Velho. Com a leve brisa da porta aberta, as pétalas acenam ao fundo.




Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
p. 32, 29/10/2011
Porto Alegre, Edição N° 16870
Conheça o jardim de Airton Moacir Nedel, em São Paulo das Missões.

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