BATIZADO DO TÊNIS
Mantenho até hoje pânico de sair na rua com tênis novo.
As duas décadas de experiência desde a escola não aliviaram a ansiedade.
Minha vontade é comprar tênis usado, para não sofrer com o receio infantil que se esconde intacto nos meus olhos de meia-idade.
Sofria com o batizado dos colegas. Bastava aparecer com um tênis branquinho que a turma fazia fila para batizar.
Nunca estudei em seminário, mas a turma virava um bando de padres sedentos para aspergir lama no recém-nascido.
Havia um delator espertinho, que gritava ao tocar o sinal:
– Fabrício está de tênis novo!
Eu procurava argumentar em vão:
– Só lavei, só lavei.
Experimentava no recreio um corredor humano que não permitia fuga. Sem apelação, escapatória, adiamento, liminar. Fechavam a porta.
Em minutos, o tênis ficava barrento, sujo, com manchas pretas de piche. Mais humilhante do que um dia de chuva.
Recebia o mapa de Porto Alegre nos cadarços – herança das longas caminhadas das crianças, que vinham de longe para a escola, atravessando vários bairros a pé.
Meus dedos terminavam esmagados e achatados. São absolutamente tortos devido a esse trauma silencioso.
O primeiro que se aproximava para inaugurar era gentil, já os demais compensavam o atraso com força e truculência. Aproveitavam o contexto para me chutar e descontar
diferenças de brigas históricas do futebol. Os pisões se transmudavam em coices.
Adoecia de remorso ao voltar para casa. A mãe protestava injustamente, ralhava que joguei bola logo na estreia do presente, que não cuidava de minhas coisas e não compraria mais nada.
Tratava-se de uma ameaça séria numa época de recatado consumismo e de poucas opções (ou se adquiria Conga ou Kichute ou Rainha).
Eu não tinha outro tênis, era um só até arrebentar, até aparecerem as unhas, até a sola se esfacelar como pão molhado.
Pai e mãe analisavam o estado dos nossos calçados diante da reivindicação de que precisávamos de um segundo par.
No jantar, enfrentávamos uma vistoria tensa, algo como reunião para melhoria de salários entre CUT e sindicato patronal.
Os pais conversavam, cochichavam e vinham com o terrível parecer:
– Dá para usar mais uma semana.
A semana durava um mês e meio.
Os tempos de quem sofre e de quem cuida são sempre diferentes.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N°