BOA NOITE, CINDERELA
Dormir é um negócio sério na vida adulta. Na infância é um castigo. Na adolescência é uma escolha.
Na maturidade compreende-se finalmente a gravidade de repor oito horas de sono para não arcar com os efeitos colaterais no trabalho.
Minha mulher respeita o expediente noturno com afinco. Sua cômoda é um santuário, não dá para mexer na ordem: os livrinhos, o abajur e um copo d’água.
Ela dorme bonita e acorda com a delicadeza de um cílio no rosto. Não é remela, é cílio, sempre há um cílio caído, uma pétala das pálpebras, que trato de retirar com alegria.
“Só um minutinho”, e ela oferece o rosto. Já conhece meu gesto.
Seu sono é pesado, mas tem uma coreografia delicada de quem frequentou aulas de piano ou balé. O interessante é o jeito que ela segura o lençol, dobra as pernas, ronrona devagar e me agarra como se estivesse regressando de longa viagem ou chegando naquele momento de uma bebedeira. Suas palavras desconexas são o tempero da noite.
Descubro que apagou quando faz beicinho. Mais do que esticar as pernas. Mais do que deixar uma pergunta no vácuo.
Seu beicinho parece pedir um beijo proibido.
O grande atestado de beleza feminina é o descanso. Há tanta rainha de bateria e porta-bandeira que dorme feio, com pose de suicida. Estatelada na cama, com uma poça de baba no travesseiro. Afora algumas espécies que roncam como se fosse um avô asmático ou um motor de ônibus escolar.
No concurso de miss, deveria ser criada uma etapa eliminatória, onde uma câmera flagra o sono das concorrentes no hotel. Muitos países entrariam em desespero para achar sua representante. Há um ingrediente erótico e de insuperável estética no repouso. Cinderela e Branca de Neve não perdem patavina da formosura. Estão maquiadas, tranquilas. Pena que não se movimentam como Cínthya.
Respeitar o sono de sua esposa ou namorada é uma arte. Demoramos para aprender. Mas que seja antes do que enfrentar sua insônia.
Quando uma mulher acorda de repente de madrugada e fracassa ao retomar o sonho, ela é capaz de cutucá-lo mesmo enxergando que você tosquiou todos os carneirinhos e relaxa no mais remoto feno:
- Ei, amor, você também está acordado? Vamos conversar?
Crônica publicada no site Vida Breve