BOLSA-LADRÃO
Sofri um assalto na frente do edifício da namorada. Onze e meia da noite. Eu me atrevi a buscar a identidade esquecida na mesa da sala. Dois ladrões encostaram seu carro e apontaram um 38 para que não me mexesse. Ensaiei uma ré quando identifiquei o par suspeito de faróis na traseira. Não tive chance de nenhum movimento brusco. Um deles se aproximou ferozmente e me ordenou para abrir a janela e sentar ao lado. Desci do carro para não ser levado. Ele girava o revólver em minha cabeça. O cano como parafuso. Eu o observei lentamente: o boné, os olhos esbugalhados, a barba rala. É um pesadelo facial de que vou me lembrar ainda que reúna todas as forças para acordar.
A dupla arrebatou meu Cross Fox e desapareceu. Comecei a festejar a série de sortes dentro do azar. Fui colecionando o que poderia acontecer de pior. Se meu filho Vicente estivesse no banco de trás. Se os dois testemunhassem a minha namorada abrindo o portão — que ficou pela metade. Se a namorada decidisse descer com sua cachorra — ela partiria correndo para a rua. Se contasse na hora com a minha carteira e cartões de crédito. Se portasse meu celular mais avançado com nomes e e-mails. Se ele se assustasse com qualquer movimento da vizinhança e me ferisse como castigo.
Ainda me via abençoado porque somente roubaram o veículo e sai ileso.
Conversando com um amigo depois do acidente, ele me deixou angustiado, cheio de remorso. Advertiu das imprudências e censurou minha completa ausência de treinamento: não poderia olhar no rosto do criminoso e desobedeci suas ordens. Mais: disse que o assalto foi um milagre. Zombei dos meliantes ao não carregar dinheiro no bolso, necessário para as cervejas da fuga. Lamentou que escapei ao serviço militar na adolescência e, por isso, rompi a hierarquia. Frustrei o trabalho de coleta dos bens.
Quase chorava, minha vontade era voltar à cena do crime e pedir desculpa, deixar uma oferenda de flores e uma caixa de chocolates na rua.
No meio dos conselhos, confidenciou que guarda 197 reais em sua carteira, na hipótese de ser assaltado. O rolo de notas hiberna no fecho ao lado da niqueleira. É uma quantia que ele não toca nem usa para outro fim — seus filhos sabem e não devem desfalcar, qualquer que seja a emergência.
O amigo preserva o volume há três anos. Três anos aguardando um roubo.
O destino é sagrado, imutável. É para não irritar o trombadinha muito menos apanhar de graça. Sua obsessão atinge às raias da perfeição, a verba não é agrupada aleatoriamente, mas dividida caprichosamente em uma nota de cem, outra de cinquenta, uma de vinte, duas de dez, uma de cinco e uma de dois. Separou todas as cédulas disponíveis no Banco Central. Os números são quebrados para não ter o nariz ou as costelas quebradas. Tem lógica severa de não contrariar nenhuma das expectativas do agressor. Seu cuidado é tamanho que ele se preocupou com o troco para o crack.
Contrariou a perspectiva, não seria incomodado pelo assaltante, dada a realidade inevitável do encontro, mas se prevenia para não desagradá-lo. Preparava-se para não ofender o sacrifício e a paciência daquele sujeito armado. Não desejava que ele perdesse tempo e se aborrecesse com coronhadas e perguntas irrelevantes. Ao invés de contratar um segurança ou um guardinha, o amigo gerencia o caos com uma linha de crédito. Criou uma imprevisível propina do bem. Disciplinou o medo como um verdadeiro homem de família.
Antigamente destinávamos parte do salário para uma poupança, com o propósito de comprar uma casa ou cuidar da educação das crianças. Agora existe a reserva econômica para assalto. Dos nossos ganhos mensais, direcionamos uma comissão ao bandido. Já aceitamos que não haverá viaturas, reforço de policiais, vigilância; aceitamos que os presídios estão lotados, que os regimes são mais abertos do que amizade colorida, que o governo não mudará a insegurança. Na minha infância, os ladrões arrancavam bolsas, hoje podem receber em casa, desde que mantenham seus comparsas matriculados na escola.
Decidimos resolver, sozinhos, o problema para manter — pelo menos — a própria vida e as reuniões do condomínio. O negócio não tem fim, cada vez mais sofisticado. Logo abriremos uma conta-sequestro e apenas entregaremos o cartão e a senha.
— É para o senhor, economizei durante uma década.
Crônica publicada no site Vida Breve