Blog do Carpinejar

BONEQUINHA DE POUCO LUXO

Arte de Cínthya Verri


Entrei no banheiro do aeroporto quase de olhos fechados, tateando as paredes após experimentar contenção de camelo.

Escolhi o vaso da ponta esquerda, para não embaraçar os vizinhos. Na real não escolhi nada. Com o ambiente lotado, peguei o primeiro vago.

Na hora em que abri a braguilha, gelei. Não é que não encontrei meu pau. Não é que tive nojo da poça em meus pés, coisa natural em WC masculino.

Enxerguei uma boneca no mictório. Uma Barbie me mirava com sua atitude sorridente de gueixa. Agachada, como que depilando as pernas no chuveiro.

O que fazia ali? Arrisquei puxá-la pela gola, mas faltou coragem. A garota já estava ensopada.

Busquei reprimir o jato, observei ao redor para localizar algum canto alternativo: apenas a pia. Fracassei no exercício de ioga. Respirei cachorrinho, respirei gato, respirei tamanduá, mas o controle escapou e urinei longamente. Tentei em vão não acertar sua cabeleira, não estragar sua pintura, reduzir a artilharia em sua pele branca.

Por um triz não chorei, lembrei dos caprichos de minha filha conduzindo seu carrinho de bebê no pátio. Senti que traí a minha paternidade.

Quem colocou uma boneca no mictório? Quem dobrou a pequena no porta-malas imundo? Quem sequestrou a beldade e a lançou no ralo artístico de Duchamp? Quem apresentaria tal grau de perversão? Especulei ser obra de um misógino recente e amador, um corno vingativo, homem amargurado, arrebentado pela infidelidade de sua mulher. Pegou um dos símbolos femininos para mijar em cima. Rompeu o fair play entre os sexos. Agiu como um psicopata de loja de brinquedos.

A Barbie atendeu aos rituais de um vodu. Não encontrava outra explicação. Um sujeito optou pela magia negra, a exorcizar os enganos e desventuras do casamento. No lugar da farofa e da cachaça, da galinha morta na esquina, da macumba prendada, invadiu um dos santuários masculinos e atirou a virgem no vulcão.

Ele sabia que não existia modo de resgatá-la, a peça sobraria vulnerável diante do pelotão apressado de fuzilamento. Empreendeu um plano diabólico, intencionado a humilhá-la em público e escandalizar os frequentadores dos voos. Ainda era a Barbie com roupa de gala. Seria menos ofensivo se fosse a esportista, acostumada a rapel e esportes radicais.

Aquilo me transtornou, gerou azia e impotência. Talvez escutando Fagner redescobriria que existe algo pior na vida e retomaria a honra.

Eu me culpava por esguichar na Barbie. Uma atrocidade indesculpável para seguir em frente na convivência doméstica. Um trauma sem perdão. Já queria me confessar, alugar um padre, contribuir com entidade beneficente.

Julgava o caso perdido, a mesma dimensão de um acidente aéreo.

Corri, suado, para a sala de embarque. Trocando as pernas, atabalhoado. Sentei próximo da porta, ansioso pelo chamado da companhia, para distrair o ressentimento nas nuvens. Foi quando acompanhei uma senhora recriminando o filho, uma menina miando desesperada de canto, um pai encabulado com a família histérica.

A mãe sacudia o menino:

— Onde você pôs a boneca de sua irmã? Onde?




Crônica publicada no site Vida Breve

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