BOTOS E SEREIAS DO ARROIO FORROMECO
São Vendelino aqui, Sankt Wendel na Alemanha. Cidades irmãs, encravadas em morros, homenageando o padroeiro dos pastores.
As idênticas casas enxaimel, a mansidão dos riachos, o silêncio cheio de cigarras e vaga-lumes.
Há até certidão de nascimento oficializando as duas como filhas do mesmo pai (imigrantes de Sankt Wendel fundaram São Vendelino em 1855). O elo é renovado nos pequenos hábitos. Crianças de sete a 12 anos trocam cartas com estudantes alemães, músicos de bandinhas realizam intercâmbios, o estudo da língua de Goethe é obrigatório nas escolas.
A diferença é que São Vendelino é a caçula, uma miniatura no momento, com 1,8 mil habitantes perante os 90 mil de sua inspiração. Dá para contar nos dedos os carros que passam.
Os bichos de estimação superam o elenco tradicional de gato, cachorro e hamster.
Marlene Schneider, 70 anos, cria seis ovelhas em seu pátio. Envaidece-se da fofura da carícia.
Odila Jahn, 65 anos, convive com dois gansos no sofá.
– Protegem mais do que cão – confessa. – Os gansos mordem meu marido quando ele me incomoda e gritam sério diante de gente estranha na varanda.
É normal um menino ganhar um porco, uma menina receber uma galinha de presente.
O folclore infantil é todo peculiar. As crianças não são trazidas pelas cegonhas, mas pescadas no Arroio Forromeco, um dos principais afluentes do Rio Caí. O jogo de cartas – schoff kopp – é o passatempo predileto, mais do que o futebol.
Se você perguntar a profissão para as pessoas, elas não serão objetivas. Olham para cima, ciscando as sobrancelhas. O consenso é responder: faço de tudo um pouco. O tudo é agricultura, o pouco representa as demais profissões.
José Jair Jahn, 37 anos, filho de Odila, é funcionário público, bombeiro voluntário e motorista de ônibus. Ou seja, bate o escanteio e cabeceia, mas ainda tem que defender e apitar o jogo.
– E torcer para mim – completa.
O temperamento é desconfiado, de poucos amigos. “Depende” é a palavra predileta. Ou kann sein.
Os são-vendelinenses falam menos do que os cotovelos. Resmungam. Discordam sem negar. Aparentemente um completa o pensamento do outro, mas estão afirmando duas coisas totalmente opostas. Antônio Jahn, 38, contesta cada frase de seu irmão Jair. Cada sentença. Cada assobio.
– Não sou obrigado a concordar com nada, nem comigo, 49,9% da população diz uma coisa, 49,9% diz outra, ninguém chega a conclusão nenhuma – comenta Antonio.
Os dois centésimos que faltam não nasceram.
O passado flerta nas janelas. Odila reside numa casa branca e verde, com mais de um século. É a terceira geração a ocupar o espaço no Morro da Antena. Marlene também mora numa construção antiga, uma das primeiras da região, com 150 anos. Dentro da residência, resistem intactas as paredes dos primeiros moradores. Pedras grês partilham os quadros com as alas reformadas. A casa já foi barbearia e armazém, a pedra da soleira está gasta pela procissão de fregueses.
As duas não são próximas, mas são igualmente incansáveis. Como cidades gêmeas. Não reclamam do jeito que foi a vida. Marlene, três filhos e cinco netos, mantém na garagem o caminhão Mercedes-Benz do marido, Albano, que faleceu há 14 anos. Por um motivo justo. Foi nele que os dois fizeram a viagem de núpcias para Belo Horizonte (MG). Anteciparam a lua-de-mel na boleia.
Quanto menor a cidade, maiores são os segredos.
Publicado no jornal Zero Hora
Série semanal BELEZA INTERIOR
(Em todos sábados de 2011, apresentarei meu olhar diferenciado sobre as cidades, as pessoas e os costumes do RS)
ps. 43, 29/01/2011
Porto Alegre, Edição N° 16595
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