CACHORRADA
Arte de Cínthya Verri
Escova de dente é um item de higiene particular. Seguia na merendeira da escola, ao lado da toalhinha de rosto e avental bordados, com o nome do dono colado com durex. Poderia emprestar pente aos coleguinhas, escova nunca.
Mas vá explicar privacidade a um irmão.
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A mãe confundia a partilha, obcecada por harmonias invisíveis (combinava a tonalidade da esponja com os ladrilhos do banheiro ou da toalha com o sabonete).
Ela comprava quatro escovas azuis: turquesa, marinho, calcinha e petróleo. E avisava aos quatro filhos de igual forma:
— Sua escova é azul.
E deu! Sem nenhum parêntese, detalhamento, explicação das diferentes matizes.
Qual azul: a forte, a fortíssima, a fraca, a fraquíssima?
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Acabávamos descobrindo tarde demais que a nossa escova servia a dois senhores ao mesmo tempo, a dois homens, um marido e um amante. Havia indícios contundentes: na primeira escovação do dia, ela continuava úmida. No momento do almoço, surgia estranhamente no box do chuveiro. Não parava no lugar que deixávamos.
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Não me importava em dividir as cáries, não tinha nojo de mim, mas Rodrigo sim, até porque não usava aparelho como eu. Ele fazia careta quando guardava a minha dentadura de adolescente no estojo.
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Acho que tomei sua escova sem querer. Complicado definir o corno da história, e quanto tempo demorou o caso.
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Com as suspeitas, o mano pirou, a ponto de diversificar esconderijos e me perseguir. Eu entrava no banheiro e ele batia na porta, pedia para entrar; um inferno, sempre no meu pé, sempre me controlando, ferrando meus devaneios com as revistas eróticas.
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Sua vigilância se transformou em doença. Colocava pimenta, catchup e mostarda nas cerdas, tudo para me prejudicar por tabela. Desejava me pegar em flagrante e me denunciar aos pais.
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A guerra fria durou de 1980 a 1983.
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Não suportava seu ciúme. Com a mesada, adquiri uma escova vermelha para me diferenciar.
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Em seguida outras cores apareceram no copo terminando a ditadura materna.
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Tristeza é azar. Na hora de lavar o nosso cachorro e limpar sua boca, apanhei uma escova amarela, velha, guardada no fundo do armarinho.
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Não tinha como saber que aquela escova era do irmão, disfarçada de suja para prevenir meus ataques.
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Ele dividiu a escova com o cachorro por alguns meses.
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Meu irmão ainda me odeia por isso.
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Fui visitar sua casa no interior do estado. Ao procurar lenço de papel, encontrei uma gaveta inteira repleta de escovas de dente.
Mais de cinquenta, ele que não é dentista e não trabalha como representante comercial.
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Eu me senti todo culpado.
Crônica publicada no site Vida Breve