CACHORRO MAGRO
Minha mãe costumava afirmar que o gato gosta da casa mais do que do dono. O dono pode ir embora, o gato permanece. Nunca tive gato para confirmar o provérbio. Mas sou totalmente cachorro. Não importa tanto a casa, mas a dona. Vou onde a dona estiver. A dona é minha casa. Farejo, sigo atrás, abano os olhos, preparado para as sentinelas mais longas na calçada e para as insônias mais ébrias dos bares.
Já tive duas residências, tantas, eu me separei e nenhuma ficou comigo, não é despojamento, é escolha, não posso ter tudo. Renunciei apesar de adorar o trânsito suave dos aposentos, o escritório repleto de luminárias, os penduricalhos das viagens, a decoração excêntrica, as poltronas de leitura e de cochilo, a biblioteca imponente.
Abandonei todos os cantos apesar de minha inclinação caseira. Apesar de ser feliz com um paninho e um lustra-móveis; o lustra-móveis é um dos meus cheiros prediletos, retirar o pó e girar os dedos pela mesa e encostos imprimindo um cuidado demorado, próprio de toca-discos. O dedo tremendo a agulha da unha; nas faixas da pele, algumas canções de Elvis Presley.
Vejo que não dependo de um teto, até as estrelas são hospedaria. Preciso de uma esposa que me distraia de mim. Por ela, sou um cachorro magro, sempre com fome. Um pouco obsessivo, muito ciumento, mas leal. Não me canso de chegar.
Sei como ninguém fazer uma mulher alegre e sei como ninguém fazer uma mulher triste. Talvez não saiba dar paz a uma mulher.
O temperamento canino me rende confusões. Quando amo, nunca encerro um relacionamento, ameaço o fim para logo resolver a conversa e as diferenças. É como um blefe, um ultimato, derradeiro recurso de oratória. Bem prepotente, tipo ou concorda comigo ou me perde.
O impasse é que Cínthya — prática e objetiva — leva a sério cada palavra, não passa pela sua cabeça que é uma metáfora. Não concorda com a malícia do desespero. Tem razão: eu me encho de espuma e de raiva, complicado discernir o que é improviso do que é roteiro. Eu acabei o namoro várias vezes, e ela infelizmente acreditou. Não era para acreditar. Seu papel era de resistir, de mostrar minha tolice.
Se arrumava a mala, ela me ajudava. Se pulava do carro, ela acelerava. Um saco, não tinha graça. Sem plateia, desisti da estratégia arriscada. Hoje termino comigo antes de terminar com ela.
E parei para refletir de onde arrumei a mania. Notei que na infância nunca partia ou entrava pela porta da frente. Reservava a campainha para as visitas. Meu caminho se desenrolava pelo portão do lado. Ia à escola, discreto, a partir do quintal, impregnado do perfume das laranjeiras nas golas brancas. A minha volta também acontecia pela cozinha, na véspera do almoço, para direto mexer nas panelas e descobrir qual seria a comida.
Na briga, é assim mesmo, não existe a porta da frente, apenas a porta dos fundos, que desemboca no pátio. Meu adeus é uma falsa despedida, um aceno confuso. O pátio ainda é casa apesar de sugerir que fui para longe. Seria a avenida da própria casa. Um corredor por fora do quarto.
Na verdade continuo no terreno. Como um cachorro, espero ser chamado de volta.
Crônica publicada no site Vida Breve