CACHORRO MANCO
Arte de Fatturi
Sou devoto dos cachorros mancos. Aquele cachorro com uma perna imaginária, apoiando-se no vento.
Admiro imensamente o vira-lata que, apesar de quebrado, percorre seu trajeto com o focinho erguido.
Que altivez! Que elegância vinda do desespero!
Irei segui-lo na rua para descobrir o que come e onde mora. Posso entornar as latas de lixo para me tornar igual. Posso errar o caminho do trabalho e respirar Porto Alegre atrás de seu vulto. Fico curioso e assombrado pela força sobrenatural que emana de seu andar.
Ele perdeu a pata, mas não a estrada. Ele perdeu a pata, mas não a vontade. Ele perdeu a pata, mas não a esperança. Ele perdeu a pata, mas não perdeu a lembrança de caminhar.
Não tenho pena dele, nem cometo o desatino de me comparar. O cão manco é um homem inteiro.
Passeia por mim e não pede desculpa. Não menosprezo sua convicção: o cachorro manco também corre. O cachorro manco talvez voe. O cachorro manco esquece que tem chão. Sua esperança é uma centopeia apressada.
Ele não se entregou ao encolhimento, continua se arriscando no trânsito pela compreensão. Aceitou apenas que a vida não é perfeita e ninguém é capaz de controlá-la.
Os homens com vergonha de amar deveriam adotar um cachorro manco e contemplar o esforço da ausência. Segurar a patinha inexistente e enxergar o quanto ela é musculosa.
Olhar com calma o pelo que renasceu depois dos maus-tratos e do sol em demasia.
Encarar os olhos carentes desprovidos de cílios, nada separando a realidade do fundo das pupilas.
Sua aparição transforma nosso jeito de desejar o mundo. É só pegar o animal no colo que paramos de reclamar dos pequenos aborrecimentos. Desistimos do orgulho. Nasce uma suave fé da carícia.
Porque o cão manco confia antes de conhecer. Faz festa mesmo sem ser convidado. No amparo estranho, abanará o rabo e tremerá de contentamento. Ele sofreu e não se tornou arredio. Sofreu e não deixou de oferecer o coto.
Um cão manco é uma passagem para a infância – ele lambe o rosto para lavar pudores e ressentimentos. Aceita um prato de comida como se fosse o seu próprio aniversário. Harmonioso na falta, nos diz que não dependemos de equilíbrio, e sim de um lugar para ir.
O cão manco é meu professor de transcendência. Me explicou que eu não posso amar por dois, posso amar por três, quatro, cinco, o que precisar para retribuir a ternura de outro amor.
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 11/08/2013 Edição N° 17519