CAINDO NA PEQUENA ÁREA
Assim como atacante simula um pênalti, o casal cava brigas.
Grande parte das discussões de relacionamento não acontece por uma justificativa clara e evidente, é pressa, desejo de resultados imediatos.
O divórcio tem motivo, a briga não. É aleatória, e invade inclusive os momentos felizes. O atacante poderia fazer gol e comemorar com a torcida, mas preferiu se jogar na área e contar com a cumplicidade do juiz. A esposa poderia beijá-lo, mas decidiu teimar com a aproximação de uma colega de trabalho e tecer perguntas constrangedoras.
Não existe briga legítima. Todas são forçadas, artificiais e teatrais. É um ranço à toa, uma provocação passageira, uma vontade de incomodar que escapou do controle. Há o equívoco de se pensar em criticar algo e logo mudar de assunto, ferir e esconder a arma, como se a palavra não fosse bumerangue e não viesse de volta, com muito mais força, cortar nossa cabeça. Planejamos a briga, o que não prevemos são as consequências. Entrar numa discussão é fácil, o orgulho não nos deixa sair.
A mulher tem algumas cartadas implacáveis para puxar seu parceiro ao ringue. Mesmo quando ele não quer e programou assistir seu futebol tranquilamente.
Eu já sofri com o blefe. Fui um zagueiro que não atingiu a centroavante e ela simulou agressão.
Estava quieto, pensativo, aguardando a rodada do Brasileiro, e minha namorada começa a antecipar a lista de tarefas da semana. Eu respondo educadamente, não entro em detalhes. Nada nos magoou durante o dia. Ela repete um ponto, replica de novo. Não que eu não tenha respondido, é que a resposta não a agradou. Tento reagir diferente, com outras palavras. Tudo sob controle, vocábulos neutros, os times entraram em campo.
Na hora do apito, como não encontrou qualquer argumento para discutir, ela vem com a tese de que a minha voz está diferente. Que voz de homem não fica diferente assistindo sua equipe?
Eu me ferrei, ninguém se salva dessa abordagem. Em vão, busco dissuadi-la da ideia, não reparo que é uma ideia fixa, indicando uma obsessão incontornável.
— Não, minha voz está a mesma.
— Não me engana, sei que aconteceu alguma coisa, o que foi?
— Nada, estou ótimo, te amo.
Apliquei o “te amo” para espantar as desavenças, um “te amo” preventivo. Faltou experiência no ramo, sempre que mencionamos um “te amo” solto do assunto é que virá guerra, é visto como um ato falho ou um sentimento de culpa.
— Eu conheço, sua voz está diferente.
— Não está, não está…
— Está sim! Está sim!
Ela aparecia com o velho papo de que me conhecia melhor do que eu, o que é irritante. Meu timbre permanecia igual, até que não aguento mais a insistência e passo a gritar.
— Que merda…
— Viu?
— Viu o quê?
— Está brabo, acertei, sua voz estava diferente. Vai agora me dizer a verdade?
Não me pergunte qual foi o placar do jogo.
Crônica publicada no site Vida Breve
Grande parte das discussões de relacionamento não acontece por uma justificativa clara e evidente, é pressa, desejo de resultados imediatos.
O divórcio tem motivo, a briga não. É aleatória, e invade inclusive os momentos felizes. O atacante poderia fazer gol e comemorar com a torcida, mas preferiu se jogar na área e contar com a cumplicidade do juiz. A esposa poderia beijá-lo, mas decidiu teimar com a aproximação de uma colega de trabalho e tecer perguntas constrangedoras.
Não existe briga legítima. Todas são forçadas, artificiais e teatrais. É um ranço à toa, uma provocação passageira, uma vontade de incomodar que escapou do controle. Há o equívoco de se pensar em criticar algo e logo mudar de assunto, ferir e esconder a arma, como se a palavra não fosse bumerangue e não viesse de volta, com muito mais força, cortar nossa cabeça. Planejamos a briga, o que não prevemos são as consequências. Entrar numa discussão é fácil, o orgulho não nos deixa sair.
A mulher tem algumas cartadas implacáveis para puxar seu parceiro ao ringue. Mesmo quando ele não quer e programou assistir seu futebol tranquilamente.
Eu já sofri com o blefe. Fui um zagueiro que não atingiu a centroavante e ela simulou agressão.
Estava quieto, pensativo, aguardando a rodada do Brasileiro, e minha namorada começa a antecipar a lista de tarefas da semana. Eu respondo educadamente, não entro em detalhes. Nada nos magoou durante o dia. Ela repete um ponto, replica de novo. Não que eu não tenha respondido, é que a resposta não a agradou. Tento reagir diferente, com outras palavras. Tudo sob controle, vocábulos neutros, os times entraram em campo.
Na hora do apito, como não encontrou qualquer argumento para discutir, ela vem com a tese de que a minha voz está diferente. Que voz de homem não fica diferente assistindo sua equipe?
Eu me ferrei, ninguém se salva dessa abordagem. Em vão, busco dissuadi-la da ideia, não reparo que é uma ideia fixa, indicando uma obsessão incontornável.
— Não, minha voz está a mesma.
— Não me engana, sei que aconteceu alguma coisa, o que foi?
— Nada, estou ótimo, te amo.
Apliquei o “te amo” para espantar as desavenças, um “te amo” preventivo. Faltou experiência no ramo, sempre que mencionamos um “te amo” solto do assunto é que virá guerra, é visto como um ato falho ou um sentimento de culpa.
— Eu conheço, sua voz está diferente.
— Não está, não está…
— Está sim! Está sim!
Ela aparecia com o velho papo de que me conhecia melhor do que eu, o que é irritante. Meu timbre permanecia igual, até que não aguento mais a insistência e passo a gritar.
— Que merda…
— Viu?
— Viu o quê?
— Está brabo, acertei, sua voz estava diferente. Vai agora me dizer a verdade?
Não me pergunte qual foi o placar do jogo.
Crônica publicada no site Vida Breve