Blog do Carpinejar

CASAMENTO COM A CARTEIRA ASSINADA

Arte de Osvalter

Se o marido desfrutasse de carteira assinada, teria uma sobrevida. Não seria despejado de uma hora para outra.

Como técnico de futebol, receberia o indulto de mais uma partida. Ganharia um final de semana para se redimir das sucessivas derrotas. Sua esposa suportaria mais uma gafe, um erro, um tropeço antes de mandá-lo embora em definitivo.

Ela tomaria uma ducha fria, deixaria a despedida para depois e esqueceria o trauma. Contrabalançaria que seu companheiro assa um churrasco delicioso, é um bom pai e de vez em quando até acerta na cama. Concederia uma segunda chance, apesar da insatisfação da torcida. A trabalheira para arrumar um substituto surgiria como argumento decisivo para a manutenção da rotina.

Mas o homem não conta com repescagem. É logo posto na parede, constrangido em arrumar seus pertences e levar suas roupas em sacolas plásticas. Porque a mala, inclusive, é dela! (não encontraremos humilhação mais severa do que sair de casa com sacolas de supermercado — até os sacos de lixo são mais elegantes).

Na verdade, ambos — marido e mulher — precisariam de carteira assinada. Não me refiro a um 13º salário e pagamento de multa na demissão.

O modelo pode ser inspirado na empregada doméstica. O Vaticano somente não bancou a receita pelo conservadorismo de suas posições. Sem dúvida, é a saída messiânica. A indústria do divórcio iria falir.

A empregada tem o corpo fechado pela lei. Não é simples despedi-la. Após três meses ensinando tudo sobre a residência, começar do zero chega a ser um disparate. É perda de tempo. E tempo é dinheiro.

Minha empregada queimou uma camisa exclusiva de Ronaldo Fraga, comprada há duas semanas em seis prestações. Usei uma única vez e demorei a lavar de propósito (não podia pôr na máquina). Se eu fosse baleado, o estrago no tecido apareceria menor.

Ela não se desculpou, é óbvio, empregada não se desculpa, diz que não sabe de nada e continua suas tarefas. Juízo Final é a reunião de todas as empregadas do mundo, organizadas em escadinha num coro, para gritar: — Fui eu!

O diálogo é platônico. Ela se faz de louca e me puxa para sua loucura.

— Minha camisa está torrada?
— É mesmo, que horror, como aconteceu?
— Não sei, é você que passa a roupa.
— Eu não sei de nada, doutor.

Nem há como resolver o mistério da destruição, incrível o descuido, como que não percebeu a malha diferente, a estampa especial com histórias e bordados, a estranheza do vestuário? É o mesmo que confundir carnaval com procissão de Corpus Christi.

Acha que eu a demiti? Claro que não. Quando encontraria uma cozinheira capaz de repetir a lasanha de minha infância?

Ela também quebrou um vaso etrusco, a única lembrança que recebi do inventário da avó. Talvez tenha sido a cauda jurássica do aspirador. Mas entrei em casa e não vi o objeto na mesa. Estranhei, considerei uma mudança sutil na decoração. Procurei pelos quartos, varanda, banheiro e nenhum sinal do vaso de meio metro. Isso é a segunda característica marcante das empregadas: não avisam o que quebrou, somos condenados a descobrir.

Tentei puxar uma conversa, controlado, naquele tom familiar de rótulo de amaciante:

— O que aconteceu com o vaso?
— Foi o vento, patrão, a janela ficou aberta e ele caiu.
— Mas a janela sempre fica aberta, há dez anos fica aberta, e ele nunca caiu.
— Pois é, patrão, sempre tem a primeira vez.

Anuncio que vou enxotá-la para os filhos, menos para ela. Mastigo a raiva e não a demito novamente. Quando encontraria uma cozinheira capaz de preparar o bolo de fubá de minha infância?

A inversão de valores é drástica. Eu me arrependo depois de dois dias. Invento um passado para justificar minha covardia, ajusto a ocorrência, contemporizo que não foi tão grave assim; afinal, qualquer avó é capaz de ressuscitar, já contratar uma empregada exige muitas vidas. Torno-me o agressor e ela, a vítima. Puxo seu saco de pó e dou um aumento salarial para que esqueça os acessos de fúria. Um dom da empregada é criar a dúvida a partir do silêncio carente, da reticência envergonhada. Faz com que a gente sinta culpa por falar a verdade.

O casamento deveria assinar a carteira. Não dispensaríamos quem amamos com facilidade. Não existiria separação pelo jogo de futebol com amigos ou por não descer o lixo ou por não lavar a louça ou pelas distrações involuntárias. Seríamos perdoados em nome de nossas virtudes, ainda que poucas, ainda que raras. No momento da briga, não pensaríamos no pior de nossa companhia, mas pescaríamos um motivo qualquer, um motivo remoto, para a insistência. Mesmo que o estômago seja obrigado a cumprir o papel do coração.





Crônica publicada no site Vida Breve

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