Blog do Carpinejar

COMA!

Arte de Wayne Thiebaud

Adoro ficar bêbado em festa de criança.

Calma, não é arruaça, desvio de personalidade, fantasia sádica. Não tomo nenhuma gota de álcool. Nem precisa.

O doce embriaga. Não há maior porre do que comer açúcar.

Brigadeiros e branquinhos são um coquetel imbatível, provocam tonturas de carrossel.

Realmente perco o equilíbrio e os dentes amolecem.

Os amigos desconfiam, acham que não contei a verdade e que estou grogue ao bebericar escondido. Como explicar que foi o papo de anjo?

A glicose tira o chão dos pensamentos. Superior ao teor alcoólico do uísque, acima das doses caubói de Jack Daniel’s.

Não atino os pensamentos, o raciocínio desemboca impreciso.

Aniversário de criança é uma farra. Não existe engradado de cerveja que provoque um estrago igual. Diante do bolo temático, absinto é refrigerante.

Com 10 forminhas azuis amassadas no bolso, destilo sinceridades, compro briga com os pais, questiono o método Piaget da escola.

Doces mudam a correnteza do DNA. Entregarei hábitos secretos de parentes, esnobarei primas, afundarei em bobagens.

Doces retiram a serenidade. Respiraremos somente com a boca. Todos que saboreiam guloseimas apresentam desvio de septo imaginário: prendem o ar, mascam o suspiro.

Duvida de mim? Repare nos meninos e meninas correndo de um lado para outro.

Os pequenos também terminam embriagados dos confeitos. De onde extraem aquela energia ruidosa, aquela gritaria de reformatório, se não das camadas em espiral do leite condensado? Transformam o pátio em guerra de vogais. Pulam corda, jogam futebol, não cansam nunca, não desistem de suar.

Minha barba é feita de fios de ovos, os olhos são camafeus, e confundirei quindins com vitórias-régias. Posso nadar no vento, posso atropelar garçons.

O doce traz o mesmo efeito de uma bebedeira.

Destrato convidados, passo a rir por qualquer frase para disfarçar o interesse pelo próximo doce, e pelo próximo, e pelo próximo.

As pernas cambaleiam depois de enfileirar bandejinhas sortidas. Os lábios enegrecem com o batom negro do granulado, assim como o limão e o sal formam a maquiagem da tequila.

Na primeira mordida (quase escrevo “no primeiro gole”), pressinto que irei longe, que não terei controle sobre o apetite, que apagarei no sofá com o cofrinho aparecendo.

Como sei que entrarei em coma açucarado? Vou gemer. Ao pecar, o alcoólatra geme, o chocólatra geme.

Não me convide para festa de seu filho. Sou o típico sujeito que rouba doce de criança e não se arrepende.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 05/06/2012
Porto Alegre (RS), Edição N° 1791

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