COMPLEXO TÊ
A residência materna tem T na maioria das tomadas. Não precisaria me preocupar com extensões e revezamento para carregar aparelhos. Nem exercer acrobacias com laptop e celulares.
Só que a mãe odeia que usem duas entradas. Tem uma fortuna de adaptadores e vem obrigando os filhos e netos a empregar uma fonte de energia de cada vez.
Ela não é engenheira ou eletricista, não realizou cálculo de ampères para adotar a medida. Não há um fundo científico em seu medo.
O abajur não pode conviver com o remédio de mosquito, a televisão não pode dividir a vizinhança com o DVD, e sucessivamente. O “benjamim” existe para bonito. Não admite sequer duas posições ocupadas, imagina três, que ajudaria ao menos o raciocínio da sobrecarga.
Seu olhar arrasta os chinelos, vasculha os rodapés, varre as quinas. Quando localiza um T inadequado arma um escândalo:
— Ai santo Pai, a casa vai queimar.
Eu é que entro em curto. O que me irrita é que ela adquire o T para negar sua finalidade.
Por que, então, comprou a ferragem inteira?
Primeiro, pensava que mãe não falhasse; tudo correspondia a desígnios de uma sabedoria secreta, milenar, inatingível. Era um embate entre Confúcio e seu discípulo imaturo. Depois é que percebi que ela não tinha as respostas do mundo, muito menos dominava as perguntas.
Talvez espalhasse T pelo simples prazer de restringir. Loucura é tolher quando não há necessidade, é sofrer quando não há dor, é duvidar quando não há indício. Não que a minha mãe seja insana, ela inventou um sistema para enlouquecer a família em seu lugar.
O complexo “T” atinge grande parte das relações, é a tirania do não-sei-o-quê.
Não sei o que quero. Não sei o que tenho.
Funciona desse jeito: você está em crise de identidade e tem vergonha de ser direta, entende o que incomoda e não vai assumir, faz de conta que está descobrindo.
A questão é colocar seu par dentro da crise para que ele ajude a esclarecer a dúvida. Mas não há dúvida. É um falso T. Criam-se as opções das outras tomadas para descartar seu emprego.
Não escolhe, responde com beiço, com talvez. Não aceita e também não recusa.
Acorda contrariada, dorme insatisfeita. Não é que não quer alguma coisa, finge que não tem noção do que falta. Provoca o triplo de esforço do parceiro para culpá-lo por indiretas.
Diz que está com fome, ele prepara italiano, tailandês, japonês, árabe. Nada a contenta.
Diz que pretende viajar e descansar a cabeça, ele arruma um final de semana em Gramado, uma quinzena no Nordeste, um mês em Santa Catarina. Nada a contenta.
Diz que está com vontade de estudar, ele inspira que se matricule no italiano, nos cursos de escrita criativa, cinema, yoga. Nada a contenta.
Seu plano é que ele se canse com as tentativas, que se veja como um inútil, sem competência para agradá-la.
De todas as saídas possíveis, prefere não pagar a conta e esperar o corte da luz.
Crônica publicada no site Vida Breve