CONFIRMA
Arte de Henry Moore
Votar não é somente eleger governador e presidente.
É a possibilidade de rever o bairro da infância e reencontrar antigos amigos.
Como a maior parte dos eleitores vota sempre no mesmo lugar, e costuma ser a zona do primeiro voto, tem a opção de visitar a família e rever colegas que nem o Facebook é capaz de localizar.
Muitos não transferem o título eleitoral, apesar da constante mudança de endereço. Apreciam preservar este domingo para exercer a nostalgia e a evocação dos laços.
A eleição torna-se uma repescagem da nossa memória. Um retorno sentimental às origens. Um passeio emocional para nosso ponto de partida.
Há quem viaje para sua terra natal com esse pretexto para conviver com os primos e tios. Há quem atravesse a cidade para caminhar nas ruas de suas malandragens infantis. Há quem entre de novo no colégio onde estudou, com aquela sensação estranha de invadir um santuário.
Rodoviárias e aeroportos estarão abarrotados de filhos pródigos com seus travesseiros e sua esperança por uma segunda chance.
Além de escolher nossos governantes, a eleição é o momento em que refletimos sobre o que nos tornamos e o que ainda queremos ser. Tem um contexto de reflexão e remissão, de julgamento de si e perdão ao outro.
Votar é virar a página de nossa biografia, retomar leituras interrompidas, soprar o pó das lombadas, tirar o marcador dos parágrafos incompreendidos.
Enquanto pensamos em quem receberá o peso verde de nossos dedos, decidimos o que podemos fazer com os nossos ressentimentos e brigas.
É definir – junto do país e do Estado – o destino de nossa paz individual.
Talvez seja a hora de aceitar a desculpa da mãe e matar a saudade do chimarrão na varanda de sua casa. Talvez seja a hora de prolongar o mandato por mais quatro anos de um amigo que a gente deixou de ver. Talvez seja a hora de levar o filho para conhecer onde passamos a adolescência.
Votar é reunir nossas forças para enfrentar o passado e as rusgas de antigamente. É aperfeiçoar os planos de governo de nossa vida, reorganizar nossas alianças, rever o que não deu certo na gestão passada de nossos hábitos.
É renovar os votos de casamento, de parceria, de paternidade e maternidade.
Eu já desfiz desentendimentos com irmãos no dia da votação. Por acaso. Não marquei nada – o próprio destino agenda reconciliações.
Quando fui votar, aproveitando que a urna familiar continua sendo na Escola Tubino Sampaio, no bairro Petrópolis, um abraço inesperado, uma risada espontânea e uma lembrança tocante já foram suficientes para desarmar o ódio e reiniciar a cumplicidade.
O amor precisa de tão pouco para retornar a ser o que era. Nada supera o olho no olho, o rosto diante do rosto, a singeleza do corpo atento e carente pedindo proximidade.
Votar é também voltar. Voltar para o lugar inicial de nossa felicidade e se abastecer de afeto até a próxima eleição.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 26/10/2014
Edição N°17964
Edição N°17964