Blog do Carpinejar

CONTOS DISFARÇADOS DE CRÔNICAS


Moacyr Scliar (1937 – 2011) foi um atleta de triatlo da literatura brasileira. Nadava, pedalava, corria. Escreveu mais de 80 livros em praticamente todos os gêneros. Só não publicou em poesia para não humilhar seus colegas.

Romancista que renovou o imaginário judaico, autor de clássicos como O Centauro no Jardim, quatro vezes premiado com Jabuti, Scliar mantinha seu condicionamento literário pelas crônicas, publicadas quase que diariamente nos jornais Zero Hora e Folha de S. Paulo.

Os relatos afetivos e coloquiais formavam uma espécie de diário de seu conhecimento enciclopédico, em que ele comentava sobre qualquer assunto e nome, desde medicina até sociologia, de Antonio Vieira a J. K. Rowling. O escritor gaúcho, falecido em fevereiro, não era um generalista, mas um sábio à moda antiga, com cultura geral sólida, pronto para qualquer discussão e cafezinho.

Não se intimidava diante da complexidade das questões. Ao contrário de intelectuais que se tornaram referência, tal Paulo Francis na década de 1980, jamais escorregou em perfil conservador, mantendo-se sempre curioso e ávido pelas mudanças tecnológicas e de comportamento e aberto a diferentes pontos de vista.

A coletânea de 1984 A Massagista Japonesa (128 ps., R$ 13), relançada agora pela L&PM, por vias tortas acena para o lado contista de Scliar, possibilitando o reencontro com sua capacidade de mimetizar dilemas do cotidiano e propor um suspense de pensamento. São 35 textos de natureza híbrida entre a narrativa curta e o ensaio. Poderiam constar facilmente em seus livros de contos as tramas de Muitos e Muitos Graus Abaixo de Zero, A Massagista Japonesa, O Ocaso da Delação e O Homem que Corria. O núcleo contístico traduz o ponto alto da obra, pelas histórias visível e invisível, concisão da ação e exagero da caracterização, além do final imprevisível.

Scliar maneja a arte de criar lógica da incoerência. Ele nos convence do absurdo a ponto de parecer normal. Como a trama do advogado que se apaixona pela maratona a ponto de transformar o casamento, o escritório e os filhos em meras linhas de chegada de uma corrida interminável pelo melhor tempo. E não é uma metáfora, o sujeito pretende fazer tudo mesmo correndo por Porto Alegre.

Uma das virtudes da trajetória do ficcionista, demonstrada com astúcia em A Orelha de Van Gogh e O Carnaval dos Animais, é justamente exumar metáforas: converter parábolas em situações literais, objetivar o figurado. Na contramão bíblica, transforma o vinho em água, leva a sério a chuva de rãs, traz à tona os efeitos colaterais dos milagres.

Magistral contador de causos, flaubertiano assumido, não deixa nenhum ponto sem nó, nunca desperdiça migalha jogada ao chão (é caminho de volta), não despreza informação abordada antes. Se uma personagem tricota um pulôver é que a roupa vai fazer a maior diferença no desfecho. Nada é avulso. Sua competência é desviar atenção a um contexto de maior movimentação, para que outra zona exploda secretamente e surpreenda o leitor.

Exemplo é a antipatia que ajuda a alimentar pelo delator da escola. Afinal, não existe motivo para admirar o guri que dedura por prazer. Toda hora alerta o professor para colegas colando na prova, trocando bilhetes de amor, conversando no fundo. Nem o professor suporta tamanha alcaguetagem e pede que ele procure se concentrar no conteúdo. Ao cabo, o fofoqueiro é pego fumando no banheiro e sumariamente expulso da instituição. O alívio dá lugar a um mal-estar, já que se descobre que o próprio delator se denunciou por bilhete anônimo e tudo aquilo que o movia era uma absoluta carência.

Scliar é cruel sendo emotivo. Um engano supor que A Massagista Japonesa servirá para matar saudade do seu trabalho. De modo nenhum: apenas aumenta sua falta.

Publicado no jornal Zero Hora
Segundo Caderno, p. 5, Edição Nº. 16767
Porto Alegre (RS), 20/07/2011

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