CORAÇÃO DA BOCA PARA FORA
Arte de Cínthya Verri
"Casal Quase Perfeito! Eu bati nele. Sem culpa e com vontade. Há um mês ele me traiu. Após uma briga, ele teve a coragem de dormir com a ex. Tivemos todos os tipos de conversas (da ira, das lágrimas, dos por quê?, dos perdões) e tantas outras para não cairmos no abismo que se abriu entre nós. Perdoei, hoje vejo que de boca e não de coração. Na primeira briga, não pensei duas vezes e lhe dei dois belos tapas, na verdade três, poderiam ser quatro. Ele deixou, como se merecesse tudo aquilo. Os dois ainda dizem que se amam, agora cada um com a sua mágoa. E ai vem a pergunta: tem conserto? Um abraço, Jaqueline"
Querida Jaqueline!
Quando a mulher bate no homem é um estado extremo, o derradeiro estágio da violência emocional. Vem depois de esgotar as mediações da discussão, o choro e o entendimento.
Uma mulher unicamente bate no homem para avisar que nunca vai perdoá-lo.
Você não deseja desculpá-lo, não admite desculpá-lo. Já deixou de ser uma desavença amorosa, é um trauma: uma lembrança repetida à exaustão e da qual não cansará de buscar detalhes e minúcias.
É uma recordação que será sempre nova por mais antiga que seja, que voltará a aparecer em qualquer dúvida, medo e impasse amoroso.
Não vai se enjoar da infidelidade que ele cometeu ainda que saiba o que aconteceu ou como aconteceu ou porque ele se permitiu levar pelo impulso. É uma ferida sem corpo. Um sangramento sem começo.
Havia uma rixa terrível entre vocês duas. Recaída com a ex é mais violenta agressão à estima feminina. É uma punhalada na vaidade do relacionamento. Um soco no porta-retrato.
Se fosse qualquer outra, uma garota desconhecida, um caso involuntário, acho que faria as pazes, admitiria o tropeço, lavaria os pratos e seguiria em frente. Mas ex é intragável, sobrevoa a residência com astúcia de corvo: disponível, falsamente compreensiva e pronta a reconciliações súbitas.
Nem é raiva que abateu sobre você, é tristeza. Ele converteu sua cama numa fria e rancorosa catacumba. É como se ele traficasse a intimidade de vocês com o mundo dos mortos.
O dolorido do processo é se enxergar menor do que o passado, pior do que aquilo que já houve. Além da sensação incômoda de não dispor de tranquilidade para brigar e ficar separada. É se distanciar 24 horas que ele já procurou o consolo no colo da rival.
Não tem conserto. Formou-se uma total desconfiança, um forte preconceito.
O homem também só aceita apanhar de uma mulher quando ele não merece perdão.
Abraço com todo o carinho,
Fabrício Carpinejar
Querida Jaqueline!
Afirma que deu tapas sem culpa. Mas bateu nele porque acredita na culpa. Não só acredita que ela existe como afirma que é dele: o causador de todo o sofrimento. Mas culpa é coisa que não existe: todos erramos.
Na relação, não importa quem põe a bola em jogo, é responsabilidade dos dois sempre.
Está sempre aberto o convite para abandonar o ganha-perde e para assumir que tudo o que se faz é também para si mesmo. Esse é o segredo central para viver bem.
Machucá-lo não conserta as coisas. Humilhar não fecha o parêntese. Surrar não dignifica a mulher. O fato dele haver aceitado o baque indica apenas a falta de melhor ideia. Não confunda choque com inferioridade.
Já que decidiu tentar, abandone o drama. Esqueça o moralismo da traição. Oficialmente, ele dormiu com a ex outras vezes, não foi mesmo? Muito antes de sua existência. Se esse pensamento não servir, ora, invente a lógica que for necessária e agarre-se a ela. Faça uma equação conveniente e pague tudo com a moeda do desejo de estar junto.
Eu digo isso porque já estão próximos outra vez. Sendo assim, teu pedido me indica que precisa de ajuda para engolir a mágoa. Essa ajuda quem dá é o tempo, se você permitir.
Esquecer é muito de nossa autoria, tanto quanto lembrar. É preciso assumir essa força para dentro.
Querida Jaqueline, eu vejo que você não tem um problema com isso que aconteceu: já escolheu ficar com ele. Sua dificuldade é moral, uma ferida na sua opinião. Está surpresa por descobrir que continua amando mesmo diante do impensado.
Há mais coragem para desbravar do que supunha. Se restava dúvidas sobre o sentimento que tinham, agora não precisa mais delas. Tudo saiu fora do plano. Há espaço afinal para criar uma vida a dois mais verdadeira.
Amar é dançar conforme a surpresa e desistir da hipocrisia. Não é como a gente esperava. Ainda bem.
Beijos meus,
Cínthya Verri
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Caderno Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 17/06/2012 Edição N° 17103
ESCREVA PARA colunaquaseperfeito@gmail.com
Porto Alegre (RS), 17/06/2012 Edição N° 17103
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