COZINHA MEDITERRÂNEA
Deliramos que a faxineira não tem fome e que deve esperar. É uma bagagem escravagista extraviada em nossa cozinha.
Não valorizamos sua refeição, fingimos que ela não existe. Revela um ranço amoroso, como se a criatura fosse um bicho, uma verdura, um aspirador de pó. Imagino que seja uma maneira velada de reclamar do valor que pagamos e das passagens oferecidas uma vez por semana. A avareza despontará nos itens mais básicos. Coisa de homem que não economiza para comprar um carro último modelo e reclama do preço do papel higiênico.
Concluímos que a faxina já está cara e que ela agora se vire sozinha, só o que faltava se preocupar com seu estômago.
Costumamos pensar que qualquer coisa serve, que ela pode se contentar com a comida requentada de dois dias atrás. Ainda forjamos um falso despojamento, dizendo para apanhar o que quiser da geladeira, mesmo sabendo que está vazia.
O que não pretendemos é nos incomodar com o assunto.
E toda faxineira percebe a exclusão. Come depois, quietinha, escondida, soprando o feijão quente como um anjo nos ouvidos de um suicida.
Desconfio que a indiferença represente um castigo porque ela conheceu nossa sujeira. Uma espécie de raiva involuntária, para logo se livrar do relatório doméstico e do que enxergou dos nossos hábitos. Inventamos uma discriminação muda, que não gera abaixo-assinado, processo e protestos.
O desconforto com as faxineiras aumenta quando me encontro com Paulo Scott, dono de uma maneira peculiar de lidar com a figura. Na realidade, um tratamento insuportável. Quisera ser igual. Cultivo raiva enciumada.
O cabra não está interessado na divisão de classes, nunca leu Marx e Engels para sua horta. Espera ansiosamente quarta-feira, o dia da limpeza, que apenas não é fatídico para ele.
Não foge da vassoura tampouco se irrita com as cadeiras viradas e os tapetes estendidos. Nada atrapalha suas vontades marinhas e disposição de rede. Segue sua rotina, com o ânimo exaltado. Alheio à confusão, prepara tábuas, afia facas, põe o avental e se entrega ao chiado das bocas do fogão, após peregrinar pela feira do peixe de manhã cedo.
Cria um ambiente afrodisíaco, mediterrâneo. Com flores, candelabros e bandejas, arma a volúpia de restaurante na sala de estar — um esforço imaginário parecido com aquele das crianças, que anoitecem o sol ao levantar uma cabana de almofadas e esticar o cobertor entre as mesas.
O romantismo acanalhado e o excessivo preparativo indicam que receberá a namorada, num golpe fatal da sedução. Mas não há namorada. Aquilo tudo é para sua faxineira.
Tudo.
(Antes que conclua bobagem, meu amigo não cursa gastronomia e testa cobaias, sequer odeia a solidão e comer desacompanhado. Muito menos guarda segundas intenções com Nausira, que tem a idade de sua mãe).
Ele grita às 13 horas em ponto:
— Posso servir?
Ela interrompe o serviço, lava as mãos e senta com o guardanapo de pano nos joelhos.
Vem sendo um ano inteiro de pratos especiais: sardinhas assadas à moda portuguesa, preparadas com alho, pimenta e azeite e o indispensável limão espremido, ou risoto de salmão com alcaparras, acompanhada de Salada Caprese e de um vinho branco.
O único pecado é que sobram para Nausira a louça empilhada e a imensa sujeira na pia e no chão. A generosidade sempre tem um pretexto.
Crônica publicada no site Vida Breve