Blog do Carpinejar

CRIANÇAS MORREM

Arte de Eduardo Nasi

Ia da casa para escola a pé. Havia um colega que saía de seu edifício no mesmo horário que atravessava a rua Bagé. Eu seguia sua mochila marrom saltitando na minha frente. Jamais puxei conversa. Ele era meu cronômetro para entrar antes do sino bater. Não estudávamos na mesma turma, ele frequentava a 102 e eu a 101.

Manoelito evitava falar no recreio. Invariavelmente sozinho, comendo seu sanduíche de mortadela olhando para o céu. Desligado dos gritos e do polícia-ladrão nos muros. Ruivo, de sardas e baixinho, um pequeno soldadinho de chumbo. Não pretendia incomodar e dar trabalho de ser visto. Acho que vinha marcado pela profecia. Não desejava gerar apego. Como se adivinhasse seu destino.

Ele faleceu de leucemia. A primeira criança que testemunhei a morte. Não acreditava antes que criança morresse.

Desapareceu uma semana do convívio para curar dores na cabeça e depois estendeu o atestado para sempre.

Lembro que a escola parou quando soube da perda de um dos seus alunos. Não se trocava de assunto. Ninguém lembrava de sua cara. Um ajudava o outro com informações vagas para compor um retrato falado dele.

Fui no velório de Manoelito. Não me esqueço do impacto do caixão pequeno. Quase uma caixa de sapatos forrada de pano acolhendo um bichinho. Ele ainda parecia distraído olhando para o céu. Não tinha muita gente. Coitado, não fez nem amizade para encher o enterro. Eu dediquei um tempão naquela manhã gelada de abril de 1979 me esforçando para entender como se morre. Plantado sob a tampa de vidro. Como se fosse a experiência do feijão no algodão molhado.

Encarava longamente o menino de idade curta e passagem fugaz pelo mundo, que se despediu sem ao menos aprender a ler e escrever. Aguardava que fosse brotar de novo. Que viria um galho verde de seu rosto. Que o grão do nariz cresceria com a respiração. Mas nenhum movimento me surpreendeu.

Não entendo ainda como se morre, muito menos como se vive. Nunca mais cheguei no horário para nada. Fiquei uma vida atrasado.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
25/02/2015


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