CUIDADO COM O OUVIDO
Arte de Cínthya Verri
Meus filhos sempre me fizeram dormir antes deles. Os dois: Mariana, 17 anos, e Vicente, 9. A sensação é que combinaram o crime na infância; um transmitiu a receita para o outro aproveitando a diferença de oito anos.
O mistério me atormentou, e escondi a informação de que adormecia primeiro. Era uma vergonha familiar, nunca seria perdoado.
Precisava me livrar desse segredo maldito.
Foram duas décadas de vexame no quarto. Depois de embalar e cantar, eu deitava um pouco ao lado de Vicente (década de 2000) e da Mariana (década de 90) para fingir que estava dormindo. E realmente adormecia. Não captava a origem do feitiço. Achava que fosse a respiração cheirosa ou a pele macia ou os barulhinhos engraçados da boca. Fracassava com o dever amoroso — não poderia ter deixado aquela adorável criatura me ganhar. Toda noite pedia uma revanche, e novamente perdia.
O que desvendei há pouco foi a tática de guerrilha das crianças. O caminho da Sierra Maestra de Fidel Mariana e Vicente Che Guevara. E, asseguro, que não está na enciclopédia “A Vida do Bebê”, de Rinaldo De Lamare, muito menos nos arquivos da CIA.
Minha vulnerabilidade reside na orelha. A orelha é o nosso sonífero, queridos pais. O éter no lenço. Nosso ponto fraco. Os pequenos encontraram a caixa de luz de nosso corpo, e só tiveram o trabalho de baixar o interruptor.
Qualquer marmanjo, qualquer diva tomba.
O nenê segura de um jeito incrível nosso ouvido. Apagamos no ato. Há um método histórico, a criança coloca uma força precisa, nem fraca nem forte, que não tem como reagir, a orelha ferve devagar, como uma timidez de fundo de sala de aula; a orelha fica quentinha, calma, segura; a orelha chama o travesseiro.
A mãozinha derruba o pavilhão auricular. Não inventaram uma cantiga de ninar à altura.
A façanha é digna de acupunturista: o bebê tapa o nosso ouvido, nos protegendo do frio e do vento, e ainda mexe os dedos pelas curvas do lóbulo. O momento fatal, derradeiro, é quando toma a franja da concha e dobra como se fosse uma página, marcando a leitura para o dia seguinte. O bebê marca onde parou a leitura de nossa vida na orelha, entende? Nosso ouvido é seu primeiro livro.
Uma tecnologia avançadíssima de ternura. Para a inveja das civilizações maia, inca, asteca.
Hoje me sinto apto a confessar e alertar o perigo. Nunca fiz nenhum filho dormir; em compensação, eles me curaram da insônia.
Crônica publicada no site Vida Breve