Blog do Carpinejar

DALAI LAMA JÁ FOI TENSIN GYATSO

Arte de Otto Dix


Bisbilhotava uma loja de artigos esportivos. Nenhum vendedor veio em minha direção. Corri para caçá-lo no fundo dos corredores e não desperdiçar muito tempo. Experimentava meu curto intervalo de almoço, que cada vez mais tem a duração de um café com bolachinhas Maria. Entre as araras de camisetas de times, enxerguei um senhor com a cor salvadora de atendimento, toquei levemente em suas costas, já com a bola da Copa do Mundo nas mãos:

- O preço, por favor?
- Não sei...
- Não poderia verificar...
- Não sou da loja, está me confundindo.
- Desculpe.
- Desculpa nada, vai se foder.

Eu não tinha culpa se ele saiu de casa com uma camisa polo laranja e entrou numa loja em que todos os vendedores tinham camisa polo laranja. Não fui tão cego assim. A pressa nos iguala. Mas ele ficou enfurecido, ofendido, por pouco não mordia as minhas próprias bolas. Uma confusão singela, absolutamente justificável, assumiu uma proporção de briga de trânsito. Levantou os braços tatuados para me empurrar e lavar a honra.

Ainda era um careca com rabo de cavalo. É triste um sujeito que tenta negar a calvície pelas costas. Não tem como levar a sério uma reputação com aquela trança raquítica, mais próxima de uma rédea do que de uma crina. Mostra que é avarento. Homem que não aceita perder cabelo nunca será generoso.

Tudo bem, estou me vingando agora. Como o lado mais fraco da história, eu apenas me afastei, abandonei a compra e a futura baixa no cartão de crédito. Não me habilitei a encher as mãos com as balinhas de morango oferecidas no caixa. O desconforto permaneceu no bolso, como um tíquete do estacionamento que não poderia perder.

É costume ecoar como agressão a troca de um cliente por um funcionário, superando em desavença aos atos de errar o nome ou intuir a gravidez numa conhecida. Não alcanço qual é a humilhação. Há debaixo disso um preconceito de classe enraizado, um medo de ser menos que forma o recalque. Ninguém quer ser faxineira. Nem a faxineira. Ninguém quer ser vendedor. Nem o vendedor. Lavador de prato no Brasil é ralé, uma submissão. Um lavador de prato nos Estados Unidos, mesmo clandestino, é chique, uma escolha.

Eu me enganei em farmácias, locadoras, supermercados, sex shop, sempre a mesma reação estapafúrdia. Uma vez abordei uma jovem de babados brancos jurando que trabalhava como garçonete e desconfio que me colocou em sua lista negra. E sumi com a sorte do bar lotado, torcendo para que ela não fosse a dona do lugar.

Não somos perdoados por não antever que o desconhecido é um procurador de justiça ou a desconhecida é uma atriz famosa. Tomá-los por outro não é uma gafe, não é uma distração, representa uma ação de dano moral. Uma injúria em último grau. O anonimato no país é uma difamação. Não vigora compreensão nem no primeiro contato. Temos que adivinhar o alto escalão de cara. Como se a carreira estivesse impressa nos traços físicos. Na rua, a sensação é que somente passeiam pessoas jurídicas.

Insuportável receber a censura típica da soberba:

- Sabe com quem está falando?

Certo que não ficarei para ouvir a resposta.

Aceitar o engano é cristão. Aceitar que não seria desagradável ser o engano é budista. A simplicidade não ofende.

Mas talvez embaralhei as figuras de propósito. O gaúcho mantém um argentino provocador por dentro, pulando no alambrado e puxando briga.

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