DEIXA COMIGO
Sofro de cacoete de vereador. Prometo antes de cumprir, me comprometo antes de pesar as consequências.
Minha generosidade é de véspera. É como assinar antes de escrever a carta. É como preencher um cheque e não abrir a conta.
Sempre posso tudo. Antes de fazer, já estou falando, já estou comemorando, já estou acertando detalhes.
Atropelo ao tirar a palavra da boca. Não verifico a disponibilidade, não sondo as chances, subestimo esforços anteriores, já confesso que será barbada, que convivo com gente capaz de facilitar o trâmite e que basta um telefonema.
É um exagero só, passo a impressão de que experimento o centro do poder de qualquer assunto. Para impressionar os envolvidos, transformo meros conhecidos em grandes amigos, converto pessoas importantes - que jamais encontrei – em confidentes.
Improviso um gabinete na varanda. Armo uma tenda de milagres na cozinha.
Em vez de ficar quieto e resolver, em vez de solucionar secretamente e anunciar o feito apenas quando realmente é certo, assumo a pendência na primeira conversa. Não declaro meus limites, muito menos respeito às peculiaridades de cada situação.
A honestidade depende do senso de realidade. E fantasio de modo inconsequente.
Há uma falsa onipotência me reinando, um Napoleão adormecido em minha mente, um Kublai Khan sedado em meu sangue.
Sim, gostaria de ajudar, mas a vontade maior é de se sentir importante ajudando. Como se precisasse eternamente do voto dos meus amigos.
Prometi um emprego ao Diego, prometi encontrar uma editora para Beto e Éverton, prometi um marchand para Tiago, prometi apressar uma cirurgia para Geverson... Todos estão esperando religiosamente. Já foram meses, e não obtive nenhum resultado. Não vingou minha influência, não rendeu minha lábia, não alcancei nenhum privilégio. Tentei, e tampouco fui ouvido, igual a eles.
E agora, o que respondo?
Serei obrigado a dizer um “não” constrangido quando poderia ter dito um “não” altivo.
Eu me decepciono frustrando os outros. Criei expectativas à toa. Mexi com destinos e alegria familiares impunemente. Não respeitei ciclos da vida e a ordem natural da burocracia, procurei demonstrar facilidades irreais.
Meu comportamento não decorre da falta de popularidade, é megalomania mesmo. Sou um hospital de caridade sem leitos, sou uma creche infantil sem brinquedos.
Deveria ser cassado, isso que nem tenho cargo eletivo.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 23/03/2014 Edição N° 17741