DESCONGELAR A GELADEIRA
Arte de Edward Munch
Na infância, não receava quando a mãe perguntava quem tinha quebrado um vaso ou quando ela questionava a identidade daquele que mexeu em sua bolsa à procura de troco.
Todo mundo temia a contagem regressiva para limpeza da geladeira.
– Vou descongelar a geladeira amanhã.
Vivíamos 48 horas de ameaças.
Ela entrava em transe monotemático. Ofegante, avisava e logo esquecia que avisou.
Era como faltar luz ou água em casa. Exigia um plantão afetivo, não se podia nem brincar com o assunto e subestimar a força-tarefa com piadas.
Descongelar a geladeira significava uma operação séria, grave, de abstinência coletiva.
Você talvez não vá entender, devido à atual oferta de geladeira com duas, três, quatro portas, capacidade para 450 litros, sistema frost free, drink express ou gelo fácil. Hoje, a geladeira até cozinha, embala e entrega a marmita quente.
Naquela época, o refrigerador não ultrapassava 1m60cm, por respeito à estatura das vovozinhas. Contava apenas com trinco simples, um lado e uma cor. Não sabia ler nem escrever, sem nada automático por dentro.
Uma vez por mês, as famílias deveriam esvaziar totalmente as prateleiras e o congelador.
Uma guerra sanitária que deveria ocorrer no dia certo (de preferência ensolarado), na hora H em que os produtos expiravam as datas de validade. Tudo para assegurar poucas perdas e uma maior economia no lar.
A privação custava caro para as crianças, aniquilava nossos assaltos apetitosos de tarde para adiar os temas. Ficaríamos longe das sobras do almoço e da janta, do ki-suco e do pudim minguante.
A mãe mobilizava a faxineira para ajudar a caçar cheiros passados e bandejas vencidas debaixo das crostas do gelo.
Não podíamos entrar na cozinha enquanto a equipe feminina realizava o serviço e inspecionava a Antártica caseira.
Elas criavam um cordão de isolamento, fechavam o acesso pelo pátio. Juro que uma dedetização seria mais discreta.
Tirar a geladeira da tomada correspondia a iniciar uma cirurgia delicada, salvar o máximo possível de mantimentos, evitar que delicadas e caras compotas estragassem.
O pai se trancava no escritório. Os filhos terminavam enviados para os vizinhos.
Pela movimentação, o bairro descobria a chegada da data decisiva do degelo.
A mãe comentava:
– Mais simples morrer do que descongelar a geladeira.
– Não exagera, mãe! – respondia.
– Exagerar? Vai morrer para ver o que é pior.
Porto Alegre (RS), Edição N° 17168