DIVIDINDO OS MEDOS
Arte: Eduardo Nasi
A paixão cresce ao dividir os medos.
Os apaixonados dividem a ansiedade, dividem a falta de fome, dividem as madrugadas, dividem a excitação, dividem as distrações, dividem o formigamento, mas principalmente o medo.
Estava no voo ao lado de um casal que começava a ficar junto. Eu percebia o frescor da relação porque um estava tentando desesperadamente ser mais simpático do que o outro. Implicavam e se elogiavam, provocavam a raiva e se amansavam. Não havia trégua na guerrinha de sinais. Um tapa nos ombros e um beijo em seguida. Um empurrão e um abraço. Uma careta e um beicinho. Experimentavam uma alternância assustadora para os demais passageiros, menos para eles, entretidos em se conhecerem e testarem os limites das próprias fronteiras.
O mais fascinante é que brincavam com o medo de voar. Ambos confessavam o pânico com felicidade. Não suavam frio, não arcavam com os sintomas de imobilidade nervosa e taquicardia, não engoliam o fôlego. Demonstravam um contentamento improvável. Tudo era pretexto para dar as mãos e suspirar simultaneamente, segurando o encosto da poltrona da frente, tal barra de um carrinho numa montanha-russa.
Divertiam-se com as turbulências, com as quedas bruscas de altitude, com o aviso fúnebre para afivelar os cintos.
Reconheciam os sustos como se fossem ilusões de um parque, não consequências reais de uma aeronave.
Quando ele comentou que não se importava de morrer, pois morreria com ela, não aguentei, tive que enjaular os meus ouvidos nos fones para conquistar um pouco de paz.
Publicado em Vida Breve em 16/08/17