Blog do Carpinejar

DOIDEIRA DESCARTÁVEL

Arte de Osvalter

Tomei um porre e não lembro nada.

Depois de toda bebedeira, adotei essa desculpa, mas eu me lembro de tudo. Sempre me lembrei. Até do que não vivi, guardo intactos os dilemas um pouco antes da atitude. Lembro com quem transei, como transei, a cor da calcinha dela, da arruaça que aprontei na festa, da minha dança vampiresca no balcão do bar que assustou quem jurava que me conhecia. Lembro que estava especialmente desafinado no karaokê, que trocei de um policial, quase fui preso, que mijei num hidrante pensando que fosse uma árvore, que beijei aquele boneco de vento do posto de gasolina.
A amnésia é uma invenção moral. Para evitar constrangimentos, para prevenir explicações, que são a parte cansativa da aventura. É totalmente irritante o inquérito após a embriaguez: dizer o que, como, onde, para quê?

A convenção se consolida na adolescência quando os pais perguntam como estava a festa enquanto o banheiro exala um cheiro familiar e terrível de vômito. Não estão perguntando sobre a festa, doce ilusão, mas sabendo do estrago e testando nossas histórias.

Desde lá, desprezamos as reminiscências pela resposta consensual e simpática: não me lembro. O assunto termina ali. Todos acreditam porque também possuem coisas terríveis para serem esquecidas em seu passado. É uma troca: não lembra o que fiz e eu não lembro o que fez.

Às vezes gostamos de beber mais da conta, para a mentira ser menos mentirosa. Raramente o excesso funciona. Pode estragar o corpo, não a memória. Eu somente me esqueço em coma alcoólico — e olhe lá.

Mais simples alegar que perdemos os arquivos, que o disco rígido foi corrompido. Se a gente diz que recorda, haverá algum chato perguntando o motivo de tanta agressividade. Há uma crença de que ninguém se destrói sem motivo. Bobagem. Eu me destruo para encontrar um motivo.

Somos cínicos, não ingênuos. O cinismo é uma ingenuidade perversa.

Talvez seja uma prova de companheirismo, para os amigos descreverem nossas peripécias com detalhes, como se a gente não estivesse presente e as circunstâncias fossem inéditas.

A graça da brincadeira é simular o total desconhecimento dos últimos instantes da própria vida. Ainda comenta-se com ceticismo: “Não entendo onde estava com a cabeça”.

Os amigos adoram editar nossos melhores piores momentos. O curioso é que ninguém é louco sem testemunhas. As mais cruéis bebedeiras partem de um cenário planejado. Carregamos os fieis escudeiros a tiracolo, para assistir a desintegração da personalidade. Premeditamos, portanto, o vexame. Isolado da audiência, apenas choramos e manchamos o travesseiro. A dor é palhaça quando desfruta de público e se sente segura entre conhecidos. Analisamos o lugar da queda, para verificar se é confortável, e se haverá pessoas do bem para nos amparar e nos carregar no colo. Não é assim?

Diria que o exagero é calculado: não acontece quando somos estrangeiros numa balada. Não é inconsequente como ousamos alardear. A explosão não se desenrola à toa, ao léu, surgirá em locais prediletos e já frequentados. Olharemos as portas de incêndio para atear fogo na garganta.

O bêbado é uma agência de notícias. Não lhe interessa beber, porém ser visto bebendo. Não é didático, é redundante. Avisa que vai beber todas. Em seguida avisa que está bebendo. A cada copo virado, nos mantém informados de que está bebendo mesmo. No decorrer, vai concluir que está bêbado, aciona o saquinho de risadas do bolso e não para. Mesmo bêbado, continuará bebendo para reforçar que está bêbado.

Desesperados são os que liquidam a garrafa, solitários em seu apartamento, longe de qualquer encenação. Os exibicionistas etílicos não passam de carentes.

A embriaguez seguida de desmemória é uma armação. Desconfie. Queremos enlouquecer um dia, não manter a loucura durante a semana. Trata-se de uma doideira descartável, como seringa, camisinha, absorvente. Aprontamos e nos aprumamos rapidamente para seguir o trabalho e continuar encarando o chefe. A onipotência não está em fazer, mas em fingir que ninguém viu e que não lembramos.

O esquecimento não é para qualquer um. Tem que merecê-lo.







Crônica publicada no site Vida Breve

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