DOIS ENGRADADOS DE LEMBRANÇAS
Trinta e sete anos resultaram em vinte e quatro caixas.
Meu amigo Daniel Scola empacotou sua vida para casar. Mudou-se para casa nova com a namorada Gaby.
Tudo o que viveu entrou em vinte e quatro caixas, tudo o que economizou, tudo o que recebeu e ganhou, tudo o que não soube jogar fora, tudo o que é.
– Eu sou vinte e quatro caixas! –, ele me repetia.
Scola estava feliz, porém ainda inconsciente da própria felicidade, ainda com o riso atrasado.
Experimentou a solidão de descer todos os livros, CDs, objetos para o frete.
Não deixou ninguém ajudá-lo a embrulhar suas coisas. Era um ritual de passagem. Foi se despedindo do passado, das lembranças do colégio, dos amores antigos, das tristezas, das medalhas, dos boletins.
Suspirou, bocejou, gargalhou como se fosse louco, absolutamente desacompanhado.
Viajava longe sem sair do lugar. Lembrar é viajar com a roupa do corpo. Os braços doeram, as costas doeram, as pernas doeram pelos sucessivos deslocamentos imaginários. Estar em vários tempos dentro de si cansa.
Mas não abdicou de realizar o translado sem ninguém. Ninguém mesmo. Nem parentes nem amigos. O corpo precisava acompanhar a exaustão da mente.
Urgia superar o passado antes de se virar para frente. Quem se casa depende de um momento sozinho com seus fantasmas.
Organizou seus pertences com a obsessão de um bibliotecário, marcando o conteúdo com hidrocor, isolando o papelão com fita.
– Sou vinte e quatro caixas – ele buscava se convencer.
Assim como concluímos, quando jovens, que a festa tinha sido boa pelo número de cervejas que bebíamos, Scola não parava de se gabar das vinte e quatro caixas.
– Minha vida consumiu dois engradados de lembranças, não foi mal, hein?
Quando ele colocou as bagagens reunidas na sala, disse que agora pediria ajuda para Gaby.
– Cansou?, perguntei.
– Não, é que, quando ela me ajudar a abrir as caixas, ela entrará para sempre em minha memória, na minha infância, na minha adolescência, vai se infiltrar definitivamente em minha história. Vou mostrar as fotos, explicar o que são meus objetos de estimação, perguntar onde podemos colocar. Não serei mais solteiro para recordar.
Daniel Scola descobriu que se mudar é guardar sozinho para abrir a dois.
E, no final, arrebentar as caixas e desistir de separar as vivências. Nunca mais saber o que é dele ou dela.
Publicado no jornal Zero Hora
Porto Alegre (RS), Edição N° 17500