Blog do Carpinejar

DUELO DE ESPUMA

Arte de Cínthya Verri

O rapaz fugiu do abraço e beijou meu rosto. Lascou um beijo de despedida, proibido.

Estava saindo de uma reunião. Era o clássico encontro de quem desconhece o nome e recebe o cartão de visita.

Ele me ofendeu com sua pele reluzente, macia. Não aparentava nenhum fio de barba. Fiquei meio perplexo. Lisa como carne rosada de bebê. Uma planura de menina.

Levei um choque, convenhamos. Não assimilava como ele mantinha tal pluma loira. Quase pedi a receita, por curiosidade. Talvez tivesse sido efeito de um peeling. Toda gente que passa por um peeling alega que tomou sol. Viver é um concurso de eufemismos, poucos se aceitam.

O cara não deveria usar barbeador, mas pinça. Ou se depilava com cera quente. Algo inacreditável. É óbvio que pensei que era gay, não fui adivinho, difícil é encontrar alguém heterossexual hoje em dia.

Eu nunca tive descanso com a face. É masculina de tantos maus-tratos. Eu me corto, arrebento espinha, crio rebanho de brotoejas, suporto queimaduras. A lâmina é ardilosa. Sofro o terror de estancar uma bolha do pescoço quando estou atrasado. Ponho papel higiênico e sopro para que seque rápido.

Mas não troco minha armadura de espinhos por nenhuma face lisa. Acho que mulher prefere enxergar um macho com filete de sangue na bochecha do que uma porcelana da Dinastia Ming, dá uma dignidade de batalha, é uma abertura para ela perguntar se me cortei. Eu me orgulho quando minha namorada comenta que arranho seu rosto. Sinto-me poderoso, animal, feérico. Zerei o cabelo de propósito para arranhá-la com toda a cabeça.

— Ui, tá picando?

Ela pensa que vou aparar, pois se engana redondamente. Permaneço escova de tanque, as felpas duras e agressivas. Não ponho fora chance de ouvir seu ui. Gemer é o começo da glória.

Heroísmo é chegar ao trabalho com manchas minúsculas e vermelhas na gola branca e engomada. Os colegas vão respeitá-lo pelo expediente inteiro. A luta com o fio do ferro não é justa, não é honesta — abrirá suas artérias na primeira distração. Eu me barbeio para me manter vivo: é a gilete ou eu. Ela não tem piedade.

Despertar desafiando o queixo me põe excitado, fornece adrenalina ao restante das horas. Não acordo com o banho, mas com o fio da navalha pressionando os poros. É uma arte matemática, preparar espuma, separar a bacia de água quente, afiar o instrumento e desenhar de baixo para cima para depois arrematar aos lados. Guerra recompensada pela loção pós-barba. O perfume chega a fazer fumaça. Naquele momento de largar o produto no rosto, entenderá que homem não massageia o couro, dá tapa em si.

Aprendi com meu pai que aprendeu com o avô que aprendeu com o bisavô. Procurar conservar o perfeccionismo de um açougueiro, e ainda retribuir com a gorjeta do riso.

Saio convencido de que sou um samurai, um dos últimos do bairro Petrópolis em Porto Alegre. Vou comemorar ao abrir a porta e receber o vento friozinho na cara. A primavera provoca um arrepio inominável. A ardência maravilhosa de quem se machuca todo dia para não ter vergonha de suas dores.

Pretendo convidar o rapaz para um duelo. Que escolha o creme.




Crônica publicada no site Vida Breve

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